O nó de escrever a partir de si

Repetimos à exaustão que toda pesquisa é escrita a partir de um lugar, seja ele explicitado ou dissolvido em meio às “objetividades”. Incluir tal reflexão em uma ressalva pode bastar para a maioria das pesquisas no campo das humanidades, mas a autoetnografia tensiona o limite do próprio lugar.
Escolhi usar o meu local privilegiado de observação para refletir sobre o ofício do divulgador científico na pandemia de Covid-19: como comunicadora, frequento os espaços, converso na linguagem, observo mais que um pesquisador de fora. Engana-se quem pensa que a autoetnografia é fácil, já que o pesquisador está inserido no campo: realizar uma pesquisa autoetnográfica é, por vezes, percorrer os labirintos internos da minha própria cognição; forçar o olhar para os detalhes que escolho deixar passar no cotidiano, expor minhas fragilidades e sentir-me nua diante do futuro leitor.
É preciso um certo descolamento de si, uma dissociação da experiência vivida na pele, para escrever academicamente sobre o que se vive. Ao mesmo tempo, distanciar-se demais pode produzir uma farsa, já que a proposta é não se deixar dissolver.
Recebi um financiamento para um período sanduíche e estou acompanhando o trabalho de uma importante comunicadora científica, Kimberly Prather, do campo da química atmosférica. Meu diário de campo é também um diário de adaptação com a língua, com a ciência das partículas, com os colegas de universidade. Aqui também me envolvi com a divulgação e amplio minha noção de, habilidade em e reflexão sobre comunicação científica a partir de outro lugar.
Nunca senti um desafio de escrita tão grande quanto o de falar academicamente sobre mim mesma. Falar sobre mim não é um problema, faço com frequência. Mas no papel… Acordo alguns dias com a intenção de pesquisar o que é que esteja mais distante de mim possível: a adaptação de ursos polares ao gelo, quem sabe? Com certeza é mais interessante e útil do que o que eu venho escrevendo.
Tem dias melhores: o afastamento dos primeiros e mais dolorosos anos da pandemia me ajudam a colocar questões em perspectiva; o extenso registro que fiz da minha vida nas redes sociais enquanto estava em isolamento, também. Agora, o deslocamento geográfico também me ajuda com um impulso de mais distância da névoa que vivi.
Sempre que me deparo com a vontade de sair correndo da frente do texto, tento ser gentil comigo. Falar sobre a pandemia é também falar sobre o maior trauma coletivo da minha geração e, como todo trauma, é possível tentar soterrar ao máximo a memória e nunca deixá-la sair do fundo da minha cabeça. No fim, essa pesquisa me faz encarar a dor de frente e mergulhar nela.
Das dezenas de autoetnografias que já li, nenhuma delas se parecia com a outra. Ainda não enxergo o formato da minha dissertação, mas sei que ela terá as lágrimas inevitáveis de aceitar usar o trauma que corroeu o meu corpo para produzir uma reflexão para fora dele.

Legenda da imagem: O ambiente da pesquisadora. Créditos da imagem: Ralph Holzmann

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