Menstruado, com O maiúsculo

Por Za Chacon

Menstruado, com O maiúsculo

Me esgota, diariamente, a sobriedade de localizar a doença do mundo em um modo perverso de produzí-lo, ao mesmo tempo em que é o meu corpo que carrega um CID, alocando em mim culpa e origem da patologia

Dentre os marcos que constantemente se repetem

como lembretes de que não pertenço a humanidade

a marca que tem nome, cor, viscosidade 

a marca que é pura materialidade 

que submete uma criança a mais complexa perversidade 

do determinismo de sua própria impossibilidade de ser:

o sangue

Prova viva da sentença de ser uma mulher

como poderia questioná-lo se o sinto eu mesmo?

escorrendo mensalmente como um lembrete persecutório

de que para mim o destino é único e obrigatório 

Como pode o corpo ser policiamento de si mesmo?

ser origem e próprio instrumento de punição

na medida que vaza da menstruação 

a condenação de ser, o teu corpo, uma ficção 

F64: transtorno de identidade

nos patologizar é preciso pra que vocês se sintam de verdade 

pra sustentar uma existência forjada na fragilidade 

fazem do delírio o próprio conceito de normalidade 

ao ponto de que responsabilizar a biologia

se torna mais fácil do que assumir sua asquerosa transfobia

Me sinto roubado 

aniquilado da possibilidade de viver uma experiência pela autonomia 

por um CIStema que suja meu sangue e minha integridade 

com sua desesperada categoria de mulheridade 

Elizabeth Mía era uma mulher trans que viveu na Argentina 

ouviu diversas vezes a mesma chacina: 

que independentemente dos peitos ou das cirurgias que pudesse pagar,

mulher jamais seria por não menstruar.

Meio litro de sangue ela tirou de si mesma

das próprias veias, em um manifesto 

performou 13 ciclos de sua vida em que sangrou por um protesto

registrando mês a mês as dores de sua transição hormonal

Effy foi suicidada pouco tempo mais tarde, por 25 anos suportou essa sociedade. 

Me pergunto quanto sangue trans precisa ser derramado

para que o sangue de vocês continue inquestionado.

 

Fotografia, poema e vozes: Za Chacon Saggioro

Sonoplastia: Gabriel Fabiano

 

 

Za Chacon Saggioro é uma pessoa transmasculina. Artista circense, psicólogo, mestre em Educação (UFSCar) e doutorando em Ciências Sociais (UNICAMP). No campo ativista, artístico e acadêmico, desenvolve a criação de abordagens menstruais transreferenciadas e comprometidas com pautas LGBTQIAPN+, tendo projetos apoiados por leis de incentivo cultural como Paulo Gustavo e Aldir Blanc.

Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025