“As plantas do Cerrado para tratar da saúde da mulher, tem o gervão, a sangria d’água, esses e o leite também é muito bom porque serve para desinflamar. Tem a unha de gato, ela é um cipó usado para desinflamar por dentro da pessoa. Tem o pau da folha larga, que serve para os rins. Um excelente remédio para as mulheres também é o leite de mucuíba, eu tenho aqui em casa um vidrinho que serve para inflamação da mulher. E o fedegoso, que serve para gripe, é feito da raiz”.
É assim, identificando o uso terapêutico de cada planta, que Dona Maria Cleuda Nascimento Ferreira, 52, mostra à pesquisadora Maria da Cruz Nunes as ervas que cultiva no seu quintal. Cearense, ela mora há mais de 40 anos em Muricilândia, município no norte do Tocantins. Foi nesta cidade de pouco mais de 3 mil habitantes que ela se tornou professora da rede municipal, casou-se com o quilombola João Carlos e teve dois filhos. Como, ainda criança, havia aprendido sobre os remédios feitos com plantas do Cerrado com a sua mãe, o seu quintal, hoje, é repleto de ervas curativas.
As plantas medicinais são usadas pelos humanos desde a Antiguidade, com registros de uso que remontam a milhares de anos a.C. “O homem é e sempre foi dependente do uso dos recursos vegetais para a sua sobrevivência. Essa utilização vai desde as necessidades mais basais, tais como alimento e medicina, até as finalidades mágicas, ritualísticas e simbólicas”, relembra um estudo, de autoria de pesquisadores da Universidade Federal do Piauí (UFPI), publicado na Revista de Ciências Ambientais.
No Cerrado, a variedade de plantas que são utilizadas como remédios é muito grande. Com óleos, cascas, folhas, raízes, argilas e resinas de plantas, produzem-se chás, xaropes, banhos, infusões e garrafadas para todo tipo de doença. “O conhecimento sobre essas plantas geralmente não é obtido por pessoas formadas em bancos de universidades, mas, sim, passado de geração em geração, mais comumente sendo utilizado pelas mulheres para cuidado com a família”, relembra um artigo publicado pela Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Com efeito, o compartilhamento de saberes sobre as plantas medicinais é costumeiro na comunidade quilombola Dona Juscelina, da qual Dona Maria Cleuda faz parte em Muricilândia. A comunidade foi fundada por Dona Juscelina, neta de uma ex-escravizada, em meados da década de 1960 e, atualmente, é formada por cerca de 236 famílias, abrigando aproximadamente 900 pessoas. Entre os saberes tradicionais repassados na comunidade, têm destaque aqueles voltados para a saúde da mulher, como os cuidados em relação ao período menstrual e ao pós-parto.
“As mulheres da comunidade quilombola Dona Juscelina têm um jeito especial de cuidar umas das outras e de quem precisar na comunidade. Elas têm conhecimentos herdados de seus ancestrais e sempre procuram por mais informações para poder ajudar a quem precisar. Compartilham esses saberes com seus descendentes e umas com as outras, mantendo vivo o conhecimento sobre os cuidados com a saúde feminina”, escreve a pesquisadora Maria da Cruz Nunes em dissertação publicada pela Universidade Federal Norte do Tocantins (UFNT).
A mais de mil quilômetros de distância de Muricilândia…
… no distrito de Buenolândia, na cidade de Goiás (GO), outra comunidade compartilha conhecimentos sobre as plantas medicinais do Cerrado. O grupo Maria Luiza Mulheres Aroeiras, vinculado à Pastoral de Saúde – que, por sua vez, é associada à Diocese de Saúde de Goiás – reúne idosas, adultas, jovens e crianças de Buenolândia e de comunidades rurais e assentamentos vizinhos para fazerem remédios baseados em plantas e trocarem informações sobre a saúde da comunidade e a conservação do ambiente.
O grupo, cujo nome foi inspirado na aroeira – árvore que é muito presente no Cerrado e cuja madeira é popularmente conhecida pela resistência às intempéries -, se reúne semanalmente há anos, com interrupção apenas durante a pandemia de Covid-19. As participantes, com origens de diversas regiões do Brasil, partilham seus conhecimentos sobre as plantas e suas respectivas curas.
“Eu tenho uma coisa lá em casa que eu não compro remédio. Eu falo: ‘vou fazer isso’ [um remédio natural]. Lá em casa, os meninos já falam: ‘lá vem minha mãe com o caldeirão da bruxa’ [risos]. É de bruxa, mas funciona! Então deixa o caldeirão da bruxa. Então, isso foi coisa que eu aprendi na Pastoral, certo?”, relata uma das participantes, que não quis se identificar.
Para além das Mulheres Aroeiras, a Pastoral da Saúde realiza um trabalho nas comunidades de Goiás que visa prevenir doenças; incentivar o plantio de hortas medicinais; valorizar o Cerrado, seu povo, bem como seu saber-fazer; e cuidar das nascentes de água e da alimentação. “Ela cumpre um papel de extrema importância, levando formações e informações sobre saúde para pessoas que são historicamente marginalizadas às garantias de direitos, como pobres e camponeses”, defende o pesquisador Jorge Augusto Almada Justino em dissertação publicada pela UEG.
Medicina popular versus medicina institucional: uma relação contraditória
Que o uso das plantas medicinais está vinculado à ancestralidade e à cultura popular, é fato. Mas, ele também representa um recurso importante para construir soluções de saúde que não são, ou que demoram a ser oferecidas, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No caso das quilombolas, por exemplo, muitas de suas necessidades terapêuticas são atendidas pelas próprias comunidades com os recursos que possuem, aponta a pesquisa da UFNT. “As mulheres têm consciência de que, dentro da saúde pública, o planejamento das políticas tem como preocupação a ampliação da oferta e não o acesso dos usuários ao sistema de saúde”, esclarece.
E, quando essas mulheres conseguem acesso ao sistema de saúde, enfrentam, muitas vezes, dificuldades com os médicos, cuja maioria não aceita os saberes e as práticas com plantas medicinais. Por isso, elas acabam propondo uma nova relação entre a medicina popular e a institucional, como exemplifica Dona Tereza, integrante da comunidade Dona Juscelina: “Os médicos não gostam que a gente ensine remédios caseiros para as pessoas, mas se tiver remédios em casa não precisa ir ao médico, é só fazer um chá e tomar. Agora, se tiver dores e não passar com nada com o chazinho, aí, sim, é procurar o médico”.
Outros médicos receitam plantas medicinais nos consultórios, especialmente depois da aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no SUS, que autoriza o uso de plantas medicinais e fitoterápicos no sistema público de saúde. Mas, tratam-se de ações individuais, que variam de médico para médico, uma vez que Muricilândia ainda não implementou o Programa Municipal de Práticas Integrativas e Complementares na Saúde (PMPICS) para ampliar o acesso, diversificar o cuidado e oferecer alternativas terapêuticas à população.
Uma situação semelhante aconteceu entre as Mulheres Aroeiras…
Buscando melhorar os problemas de saúde de Buenolândia, o grupo se mobilizou junto à Secretaria de Saúde para regulamentar o PMPICS no distrito. O plano era que as mulheres ocupassem uma sala subutilizada da Unidade Básica de Saúde (UBS) de Buenolândia para orientar a comunidade a partir dos seus conhecimentos sobre saúde popular, cuidados com o ambiente e fazedura de remédios orientados pela Pastoral da Saúde. Assim, respaldadas por uma política pública dos três níveis governamentais – municipal, estadual e federal -, elas melhorariam a atuação do distrito na Atenção Primária à Saúde (APS), primeiro nível de contato com o SUS.
O pesquisador Jorge Justino, que acompanhou o processo, enfatiza que, com essa ação, as Mulheres Aroeiras não pretendiam se colocar como profissionais da saúde nem gostariam de ser a única opção de recurso para os necessitados. “Elas se colocaram nessa condição por enxergarem o vácuo deixado pelo poder público na UBS e por acreditarem que os conhecimentos acumulados e compartilhados por elas durante suas vidas e suas experiências podem ajudar outras pessoas da comunidade”, atesta. As mulheres conseguiram a aprovação do projeto de lei em 2019, mas o PMPICS nunca foi colocado em prática.
Outra iniciativa promovida pelas Mulheres Aroeiras foi a criação da Farmacinha da Pastoral. Com funcionamento dentro da Casa da Agricultura Familiar, que é associada à Pastoral da Saúde , a Farmacinha comercializa os remédios produzidos pelas Mulheres Aroeiras a partir das plantas medicinais do Cerrado. O enfoque principal é atender às necessidades da população de Buenolândia, como explica a coordenadora do grupo, Maria Luiza da Silva Oliveira.
“Nós trabalhamos com mulungu, jatobá, angico, pé de perdiz, velame branco, velame amarelo, salsaparrilha, ipê roxo, pata-de-vaca, arnica, açafrão, calunga, carqueja, cavalinha, chapéu-de-couro, chá-de-frade, creme, lobeira, pacari, sucupira, copaíba, baunilha, mama-cadela, barbatimão, mata-pasto, barú, murici, aroeira… Cinquenta por cento dos remédios da farmacinha, ou mais até, vem de plantas do Cerrado”, relata Oliveira.
Mas, ainda que atenda a muitas necessidades da comunidade, a Farmacinha da Pastoral não tem condições de atender a todas as exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), como a manutenção de um profissional farmacêutico habilitado – em parte, pela falta de recursos financeiros. Na prática, a inadequação aos parâmetros da Anvisa torna o serviço ilegal, o que provoca preocupação entre as integrantes da Pastoral. Elas temem que a fiscalização, além de interditar o espaço, gere multas ou mesmo processos judiciais.
“Algumas das medidas exigidas pela Agência são fora da realidade das farmacinhas visitadas e extremamente dispendiosas se implementadas. O ‘fetiche’ de adequar as farmacinhas a essas medidas sanitaristas é justamente para atuarem dentro da ‘legalidade’ federal que gera um ideal de ‘farmácia modelo’. Criar uma ‘farmácia modelo’ se assemelha a um processo civilizador. No fundo, trata-se de domesticar a ‘magia’ da medicina popular, purificá-la de suas imperfeições ameaçadoras e transformá-la em ciência”, aponta um estudo da Universidade de Brasília (UnB).
Hoje, para além da PNPIC, questões relacionadas à medicina popular são tratadas de forma fragmentada por diversas políticas públicas e programas de governo, como: Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais; Sistemas de Produção de Orgânicos; Programa de Bens Culturais de Natureza Imaterial; Política Nacional de Agricultura Familiar; Política Nacional de Biodiversidade; Legislação de Acesso a Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Repartição de Benefícios; Política Nacional de Assistência Farmacêutica; Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos; entre outros.
O desafio de conservar e restaurar plantas medicinais do Cerrado
“No Cerrado tem vários tipo de remédio que a gente encontra. No cerrado tem pé de perdiz, o senhor acha o algodãozinho, o senhor acha a mama-cadela, tem aquela outra também, o chá de frade, tem vários remédios que a gente encontra. E nós acaba utilizando eles. Por causa desses desmatamentos, tá acabando tudo os remédios no Cerrado. Só os remédios não, o Cerrado que tá acabando, né? Vai acabando com os remédios que a gente necessita muito. E isso prejudica a vida da gente, né?”.
A fala de uma integrante do grupo Mulheres Aroeiras, que não quis se identificar, ao pesquisador Jorge Justino representa uma preocupação comum entre as mulheres da comunidade Dona Juscelina e da Pastoral da Saúde. Elas relatam dificuldade crescente em encontrar determinadas espécies de plantas medicinais em locais onde antes eram achadas com facilidade ou mesmo em áreas pouco degradadas. Em macroescala, as preocupações dela se confirmam: segundo o Mapbiomas, em 2024, foram desmatados 652.197 hectares de vegetação nativa no Cerrado, que, sozinho, representa 23,9% do território brasileiro.
Para combater a conversão crescente, existem diversas iniciativas para conservação e restauração de áreas degradadas do Cerrado e para recuperação do cultivo de plantas medicinais típicas do bioma. “As propostas abrangem esforços de conservação ex situ [fora do seu habitat natural] com bancos de germoplasma; esforços biotecnológicos como cultivo in vitro [em laboratório] e micropropagação; conservação in situ [dentro do seu habitat natural] como a implementação de áreas para conservação e cultivo de plantas medicinais; e implantação de sistemas agroflorestais”, como explicita estudo da UFPI.
Uma das iniciativas dedicadas à conservação e à restauração do Cerrado in situ é o Biota Campos, projeto temático financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Ele visa ampliar conhecimentos sobre a biodiversidade dos campos naturais de São Paulo e de estados vizinhos por meio da caracterização da comunidade vegetal dos remanescentes e seus fatores condicionantes; da priorização de espécies, ecossistemas e áreas para a conservação; da dendrocronologia [técnica para datação da idade por meio dos anéis de crescimento] aplicada a plantas pequenas; e ações correlatas.
A conservação e a restauração de plantas medicinais, no entanto, perpassam diversos obstáculos, que dificultam a multiplicação da maioria das plantas do Cerrado. “O maior desafio é a dificuldade de multiplicação dessas plantas. A germinação das sementes e a produção de mudas ainda são um mistério para muitas espécies. Além disso, algumas delas rebrotam se as raízes ainda estiverem ‘adormecidas’ no solo, como Calliandra dysantha Benth (flor-do-cerrado) e Brosimum gaudichaudii (mama-cadela). Mas, é pouco provável que sejam trazidas pela fauna, germinem e se estabeleçam espontaneamente, porque a colonização de áreas degradadas de Cerrado por chuva de sementes é muito difícil”, esclarece a ecóloga e líder do projeto Biota Campos, Giselda Durigan.
Ela também lamenta que seja rara a interação entre as pessoas que detêm os saberes tradicionais e as que testam cientificamente a eficácia das plantas ou de seus derivados na cura de doenças. “A validação desse conhecimento por testes laboratoriais seria uma relação ganha-ganha, em que o conhecimento tradicional poderia ser devidamente remunerado nos casos em que a eficácia venha a ser comprovada, de modo que possam ser legalizados a prescrição, o uso e comercialização do medicamento”, defende.
A cientista aponta, ainda, que pode haver uma conciliação entre o extrativismo praticado pelas comunidades tradicionais e a conservação do Cerrado, desde que o extrativismo não dependa do arranquio das plantas com raiz e que não seja praticado em escala comercial, o que exigiria populações grandes dessas plantas. Em estudo sobre o assunto, os pesquisadores Francisco Leandro Martins da Costa e Renato Adriano Martins corroboram e complementam: “Embora os raizeiros usem muitas plantas para fabricar remédios, não há uma degradação violenta, visto que eles não se utilizam da planta por completo e sim de matérias que elas fornecem, como cascas, raízes, óleos e folhas”.
O estudo da UFPI indica que uma das principais propostas para a eficiência da conservação é o envolvimento direto da comunidade, não apenas pelo seu saber local, mas pelas técnicas de cultivo, manejo e proteção das espécies e de seu habitat, bem como pela herança cultural de cada comunidade construída ao longo do tempo. “A compreensão da perspectiva dos povos tradicionais quanto à conservação da natureza, baseada no reconhecimento de sua identidade, na valorização de seu saber, na melhoria de suas condições de vida e na garantia de sua participação na construção de uma política de conservação pode ser um percurso possível e favorável a ser trilhado”, finaliza.
Beatriz Ortiz é Técnica em Meio Ambiente pelo Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM), jornalista pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), especialista em Jornalismo Científico e Mestranda em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua como jornalista de ciência no Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), ligado à Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (SEMIL-SP). Tem experiência como pesquisadora, repórter e assessora de comunicação em instituições públicas e privadas.
Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025