O sangue de Íris

Por Fernanda Menezes

Em um reino antigo, onde por séculos reinava a harmonia e a paz com a ajuda de uma entidade antiga chamada Íris, essa entidade mantinha o equilíbrio no reino devido ao acreditar da sociedade em sua existência como um símbolo de vida e de igualdade. Íris era responsável pelos ciclos da vida. Nas fronteiras desse reino, uma força sombria começou a crescer silenciosamente. Aos poucos, essa ameaça foi se fortalecendo, pronta para romper o equilíbrio e mergulhar o reino em trevas, solidão e um silêncio cruelmente imposto a meninos, menines e meninas que menstruam.

Íris (representa a menstruação) – Uma entidade antiga, guardiã dos ciclos da vida. Invisibilizada e marginalizada ao longo dos séculos.

Aneres (representa a equidade) – Uma jovem guerreira de luz, filha da justiça e da Empatia, que empunha a Lança do Reconhecimento e veste a Capa da Compreensão.

Ordon (representa a sociedade capitalista e machista) – um monarca sombrio, dominador de impérios, que alimenta seu poder do silêncio imposto a corpos menstruantes.  

O silêncio

Em um mundo chamado Cyclos, onde toda sua existência de vida se dá em ciclos, a água, plantas, animais, as luas. Existia uma entidade conhecida em sussurros pelas vilas e bosques. Íris, que mantivera por muito tempo o equilíbrio completo entre natureza e humanidade. Após forças sombrias começarem a tomar conta de Cyclos, Íris caminhava escondida pelos bosques das vilas, coberta com um véu vermelho. Seus passos deixavam pétalas de carmesins, mas sua presença era evitada pelos que passavam por ela.

Quanto mais as pessoas da vila desacreditaram de Íris e esqueciam da sua importância para o equilíbrio da vida, mais as coisas saíam de controle. Os dias foram tomados por caos, tristeza e repressão, principalmente daqueles que mencionaram Íris ou que fossem vistos com ela. Principalmente os que tinham ligação direta com ela, aqueles que possuíam útero e que sangravam. A sociedade passou a acreditar que todo o desequilíbrio que passou a existir na sociedade era culpa de Íris e não de quem imperava em Ordonia.

No reino de Ordonia, comandado por Ordon, qualquer menção à presença de Íris era punida. Ordon havia construído castelos de vergonha, vendia produtos envoltos em mistério e impunha a todas as pessoas que tinham ligação com Íris o exílio. O que existia em Ordonia havia se espalhado por quase toda Cyclos, quem estava no poder não queria que a sociedade fosse igual e harmoniosa, a força de Ordon vinha do caos, da desunião e da desigualdade.

Em Ordonia, não existiam pessoas com útero, eram totalmente invisíveis, tidas como incômodas, indesejadas e sujas. Exceto, um grupo selecionado rigorosamente para a perpetuação e aumento do seu reino. Este vivia dentro do castelo, sua identificação era numérica e nada podiam reclamar ou falar. Mas em seus pensamentos, todos acreditavam que, em algum momento, Íris iria voltar a ser forte e que o equilíbrio voltaria. Cedo ou tarde, seus corpos estariam livres, seriam vistos e respeitados.

 

A esperança: Aneres

Em uma particularidade de Cyclos chamada Lunara, longe do controle de Ordon, crescia Aneres. Filha de Justiça e de um viajante chamado Empatia. Durante toda sua infância, Aneres cresceu ouvindo histórias sobre Íris.

“Ela é a essência da criação”, dizia sua mãe. “Daqui a alguns anos, sua missão será encontrá-la e trazê-la de volta.” 

Ao completar 17 ciclos de sua vida, Aneres finalmente recebeu sua missão: restaurar os direitos e a dignidade de Íris. Ela recebera a missão que todos temiam. Atravessar as fronteiras de Ordonia e confrontar Ordon.

Seus pais, sabendo que sua trajetória não seria fácil, lhe deram três artefatos mágicos:

A Lança do Reconhecimento, capaz de abrir feridas invisíveis.

A Capa da Compreensão, que traduz silêncios em palavras.

O Espelho de Ciclara, que revela verdades ocultas nas narrativas dominantes.

Logo se espalhou por Lunara que Aneres havia começado a sua jornada. A esperança voltou a ser algo real para aqueles que haviam perdido sua fé e aqueles que nunca perderam voltaram a sorrir. Todo desejo e ajuda possível era enviado para Aneres, pois ela não estaria sozinha nessa jornada.

 

O encontro

Para atingir Ordon, Aneres precisava encontrar quem ele mais temia o seu retorno: Íris. A Salvadora de Cyclos atravessou as Montanhas do Tabu e chegou à Floresta do Sussurro. Lá, encontrou Íris, encurvada sob uma árvore de sangue lunar. Aneres se aproximou com curiosidade e olhou por um bom tempo Íris, sem acreditar que ela era real, que todas as histórias que sua mãe a havia contado estavam ali à sua frente.

“Quem és tu para ousar me olhar nos olhos?” sussurrou Íris.

 “Sou Aneres. Vim devolver-te tua voz.”

Íris tremeu. Quem tão jovem ousaria devolvê-la aquilo que Ordon havia roubado há séculos e colocado como maldição e sujidade?

“Minha voz? Ordon roubou-a há séculos. Me colocou como a pior das maldições para aqueles que têm útero.”

“Eu não temo o teu fluxo. Eu o celebro.”

Íris chorou. Pela primeira vez, não de dor, mas de esperança. Alguém acreditava que ela não era uma maldição e ainda havia esperanças para mudar o futuro. Havia alguém com os artefatos certos para enfrentar Ordon.

 

A revolta dos ciclos

Íris e Aneres começaram a visitar vilas e cidades. O primeiro artefato utilizado, nessa etapa da jornada, foi a Lança do Reconhecimento. Aneres perfurou as camadas da ignorância, fazendo as pessoas reconhecerem a importância de Íris. O segundo artefato, A Capa da Compreensão, fazia com que mães e pais conversassem com suas crianças sobre a importância de Íris na vida e das particularidades que cada pessoa com útero pode ter, sendo ela cis, trans, não binárie. O último artefato usado foi o Espelho de Ciclara, que revela as mentiras de Ordon, o comércio abusivo, a falta de acesso a produtos menstruais, a exclusão de pessoas trans e não bináries de cuidados.

Pessoas começaram a marchar sob a bandeira rubra da dignidade menstrual.

 

A Ira de Ordon

Ordon, ao perceber a rebelião crescente, soltou seus soldados: os Silenciadores, seres sem rosto que sufocavam qualquer conversa e distorciam as verdades, criando mentiras que se espalharam como verdades universais.

Num confronto épico no Vale da Invisibilidade, Aneres enfrentou o General Apatia.

“Você nunca vencerá, menina. Menstruação é vergonha!”, gritou ele.

Aneres respondeu: “Vergonhoso é viver sem dignidade!”

Íris, fortalecida, ergueu-se e libertou seu poder: uma onda de sangue-luz que fez germinar flores de sabedoria. Os Silenciadores dissolveram-se em névoa.

 

O Julgamento de Ordon

Com o povo unido e tendo esperança, Aneres e Íris marcharam até o trono de Ordon. Ele tentou usar seu cetro do Consumo para subornar consciências.

Mas o povo não mais se calava. Todos sabiam o quanto Ordon era mentiroso e traiçoeiro. O povo passou a perceber que unidos eram mais fortes e que nada podia impedir que retornassem para a harmonia e equilíbrio que viviam antes.

Aneres colocou o Espelho de Ciclara diante dele.

Ele viu seu império de exclusão ruir.

“Vocês vão destruir tudo o que construí!”

“Não”, disse Íris. “Vamos reconstruir, com dignidade.”

 

O Sangue da Íris

Ordon foi destruido. Sua figura foi transformada em estátua e colocada em um museu da memória. Assim, todos iriam lembrar dos tempos que foram sombrios e da bravura ao lutar pela igualdade.

Íris foi coroada como Guardião dos Ciclos. Aneres tornou-se conselheira suprema de Equidade.

Criaram-se leis de acesso universal a produtos menstruais, educação menstrual em todas as escolas, e centros de acolhimento e cuidado para corpos diversos.

As pessoas aprenderam a ver no sangue um símbolo de vida, não de vergonha.

 

Utopia Rubra

Em Cyclos, o Dia da Íris é celebrado com danças, rodas de conversa, e o Festival do Primeiro Ciclo, onde meninas, menines e meninos aprendem juntos sobre o corpo, o respeito e a dignidade.

Íris, de véu agora dourado, caminha pelas ruas recebendo flores.

Aneres, mais velha, sorri ao ver o mundo que ajudou a construir.

E uma criança pergunta: “Por que antes era proibido falar disso?”

Aneres responde: “Porque tinham medo do teu poder. Mas agora, ele é teu.”

 

——

 

Nota da autora

A disciplina de Sócio-antropologia da Ciência e da Tecnologia foi uma grande surpresa para mim. Falar sobre menstruação nunca foi nada fácil ou comum na minha família. Na verdade, sempre tive muita dificuldade em abordar o tema e até certo “ódio”: por que preciso passar por isso todo mês? Realmente é necessário? Odeio cólica, odeio sentir que não posso fazer várias coisas.

Chegar ao mestrado e descobrir que existem pesquisas com um viés antropológico sobre o tema representou uma mudança profunda na minha forma de pensar.

Optar por escrever um conto foi a maneira que encontrei de consolidar essa nova perspectiva. Perceber que há inúmeras problemáticas sociais, culturais e políticas envolvidas na questão da menstruação e que, muitas vezes, a sociedade escolhe ignorá-las. Criar uma narrativa literária me permite imaginar como seria uma sociedade que enxergasse a menstruação de outra forma, reconhecendo-a como um dos elementos centrais para a existência da vida, e entender que existem vários corpos que podem menstruar e esses corpos têm direito de escolhas.

Fernanda Menezes é bibliotecária, pesquisadora e pós-graduada em Revisão Prática de Texto. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e Cultural (PPG-DCC), vinculado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LABJOR/Unicamp). Integra o corpo editorial do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, atuando na área de divulgação. Suas áreas de pesquisa incluem divulgação e comunicação científica, acessibilidade e inclusão, periódicos científicos, bem como representação e recuperação da informação.

Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025