Normas de gênero e florzinhas lilases

Por Larissa Pelúcio

De sexta para sábado dormíamos na casa de nossa avó. Um quarto com duas camas bem simétricas lutava para estabelecer entre mim e minha prima uma harmonia inexistente. As crianças disputam muitas coisas aos gritos, mas aquelas toureadas em silêncio são as que importam de verdade.

Minha prima, um ano mais nova que eu, era uma criança linda e tímida. Nada disso impedia sua vilania infantil: apontar minhas espinhas odiosas; falar do meu cabelo que mudava de um ondulado suave para uma rebeldia encaracolada; rir dos meus peitos doloridos e ridículos no sutiã estilo camisetinha que minha avó havia me dado e insistia que eu usasse. Ela, minha prima, estava ali com sua pele impoluta, seu torso liso e os cabelos enormes e pretos. Eu não sabia, mas estava na telarca — nome grego e feio para anunciar que os pelos pubianos e os seios estão surgindo e condenando meu corpo infantil a normas de gênero contra as quais eu iria lutar, décadas depois.

Pois num sábado comum do ano de 1973, menstruei. Acordei com o lençol branco com florzinhas lilases manchado de sangue e minha calcinha idem. Eu já sabia do que se tratava, minha mãe me dava livros infantis sobre educação sexual, mas não conversava comigo sobre o que foi para ela menstruar. 

Eu fui uma criança mexeriqueira, gostava de estar entre adultos, portanto eu já havia escutado muitas conversas sobre cólicas; as reclamações sobre o incômodo dos absorventes; a preocupação manifesta com as manchas e a necessidade permanente de invisibilizar a menstruação. Um dia, naquelas conversas em que eu me intrometia, minha mãe contou que quando ela era pré-adolescente, termo que nem existia quando ela era pré-adolescente, teve curiosidade em relação a caixas colocadas no alto de uma prateleira na farmácia. Sua mãe, que não é a avó desta história, ficou desconcertada e disse: são lenços para mulheres. E minha mãe pensou: lenços? Que mulher iria deixar os lenços bordados em delicada cambraia para usar panos que de tão feios estavam escondidos em caixas nas prateleiras altas? 

Naquele quarto vivi minha menarca, termo técnico para o primeiro sangramento menstrual. Olhei para o lado e minha prima dormia o sono de quem não menstrua. Puxei o lençol manchado (naquele tempo os lençóis não tinham elásticos que os prendessem ao colchão). A operação foi rápida. Joguei por cima a colcha de chenile e para baixo da cama a prova do “fim da minha infância”. Saí silenciosamente do quarto, corri para o banheiro onde enrolei minha calcinha em metros de papel higiênico, escondendo-a no fundo do saco de lixo. Eu precisava tirar aquele saco dali. Meu deus, como eu iria viver uma vida de segredos se eu não sabia nem como lavar um lençol? 

Na porta do banheiro, com o saco de lixo na mão e o desespero na cara, encontrei minha avó.

  • Mas já acordou? E esse lixo?
  • Dor de barriga, vó.
  • Quer um chá, minha filha?
  • Quero (e nesse momento eu já estava quase chorando).
  • Que foi?
  • Nada.
  • Ruum (era assim que minha avó duvidava, com um som que vinha da garganta, mas saia pelo nariz).

Ela entrou no banheiro e eu corri para o fundo da casa onde ficava o camburão que servia de lixeira. Foi quando ela viu o que eu não tinha visto: a mancha na camisola. Minha avó não me parou, nem falou nada até eu mesma constatar que estava perdida. Ao trocar de roupa, eu também vi o sangue na camisola. Foi demais, comecei a chorar, tentando não acordar minha prima. Quis, eu também, ir para debaixo da cama junto com o lençol, esperando que um buraco negro nos sulgasse. Me dei por vencida, saí do quarto segurando o resto do choro. Minha avó já me esperava no corredor. 

Ela me abraçou.  “Agora você é mocinha.” Eu tremi. Não queria ser mocinha. Mocinha tinha que fechar as pernas. Não podia dar risada alto. Tinha que aprender a se comportar de um jeito ensaiado. Mocinha era o contrário de criança. E ser criança era minha coisa favorita.

Sim, minha avó me serviu o chá, me abraçou e foi fofa, mas não disse coisas sábias baseadas em uma sabedoria ancestral temperada por ervas que me trariam alívio se usadas da maneira correta; nem veio com ensinamentos sobre como sangrar sem se entristecer. A ancestralidade era tão patriarcal quanto a contemporaneidade, talvez mesmo mais, e estava cheia de alertas sobre como me sentar, me mover, me limpar, mas principalmente, contornado por um rosário de nãos. Não podia lavar a cabeça, pisar descalça no chão frio, brincar com meninos como fazia antes, comer coisas remosas, o que incluía chocolate e caranguejo, duas coisas que eu gostava muito. Enfim, uma chatice. 

Por que minha avó não sabia falar baixo? Eu me senti tão exposta ali naquela cozinha com ela falando do meu corpo como se eu não soubesse nada sobre ele, pior que  eu não sabia mesmo. Só sabia que a menstruação viria um dia e que seria ela a inaugurar minha capacidade reprodutiva, o que significava poder ter bebês. Tinha lido também, que o útero “chorava triste a ausência de uma criança” e isso era a menstruação, uma espécie de falta, de falha. E os meninos, quando a vida reprodutiva deles começava? Eu pulei essas partes no livro porque eu tinha vergonha de olhar para pênis tão gráficos. Já os achava toscos, rabiscados nas portas do banheiro da minha escola. Que besteira isso de desenhar pintos como se eles fossem uma natureza morta. E pensar que só em 2018, veríamos pela primeira vez um clitóris desenhado. Mas o ano era 1973, o Brasil era um país triste e minha avó não se calava, competindo com o som do rádio que vinha da casa da vizinha.

 Dona Beata, que tinha esse nome que mais parecia um apelido dado por moleques maldosos, ouvia rádio o dia inteiro. Lá da casa dela vinha o som de uma música que tocava na novela. Ruthinha acompanhava o rádio cantando num inglês inexistente. Alone again, naturally. Pronto, agora eu tinha até uma trilha de novela para aquele momento, que merda. 

Ruthinha era uma moça de uns 16 anos que dona Beata criava mais por conveniência do que por amor. Ela contava tantas histórias incríveis jurando serem de verdade, que eu e minha prima tínhamos certeza que ela inventava a maioria. Isso não tirava nosso gosto de escutá-las. Muitas vezes, depois do almoço de sábado, minha avó deixava a gente ir para frente da casa e sentar no muro baixo e largo que dividia o jardim dela das roseiras de dona Beata. Ali tinha uma sombra muito boa feita pelo abacateiro que deve ter sobrevivido a toda aquela vizinhança de senhoras viúvas. Sentadas no muro, nós escutamos as histórias de Ruthinha. 

Eu vi um filme lindo, lindo, lindo. Ruthinha elogiava sempre em trio. Era de uma menina, assim de uns 10 pra 11 anos, que fugiu do orfanato onde era feita de escrava e foi viver na rua. Para se proteger, ela se vestia de menino. Ela era danada, esperta, malandra mesmo e virou líder do bando. Num dia, eles iam roubar um cara que vivia num carro desses que dá pra morar, sabe? Coisa de americano. Então, esse tipo. Bem na hora deles fugirem com umas besteiras, canivete, uma revista de mulher nua, uma carteira de cigarro, o cara acorda e pega no braço da menina, mas que ele achava que era menino. Ele tava fingindo que tava dormindo, e só catou assim ó, pegando bem no pulso da moleca. Os outros, ó, por aqui, foram simbora. 

e aí? 

Pera, que a menina era esperta e se fez de coitada, mas ainda se passando por menino. O certo é que eles acabaram fazendo uma amizade ali, sabe? Ele era bom. Um pão, bem lindo, galã. 

e ele não sabia que ela era menina?

Credo, vocês duas, num sabem esperar. Ele não sabia. Passaram a ser assim tipo pai e filho, mas também companheiros. Ele ensinou o menino… a menina, vocês tão entendendo, né?, a cozinhar umas coisas lá, a fumar, jogar baralho, dirigir o carro que ele fazia de casa. Coisa mais bonita a amizade deles. 

Numa conversa deles, a menina disse que sonhava em conhecer o mar. Aí que o filme fica bonito mesmo. Lindo, lindo, lindo. Eles pegam o carro e vão naquelas estradas de filme americano, sabe? Bem deserta, que a gente não vê nem gente nem o fim, e vão simbora. Acontece muita coisa bacana e eles vão ficando mais amigos. Pra mim, ela já tava gostando dele como homem.

Por que como homem?

Como homem, namorado, amante.

Ela não era criança? 

Mas ela era menino!

Vocês duas são muito bestas mesmo. Ela tava ficando mulher. 

A viagem pro mar demorou foi muito. Antes de chegar na praia, eles pararam num lugar que vendia um monte de coisas e o homem, acho que era Joe o nome dele, comprou pra ela, que ele achava que era ele, uma short de banho e uma boia azul assim meio transparente, linha, linda, linda. 

Daí quando eles enxergam o mar o sol tava,assim, nascendo. Aquelas cores bem de céu de pintura, sabe? Eles estacionam o carrão lá e vão correndo até perto d’água. Daí, tinha aquelas cabines, assim estreitinha, tipo uma casa bem apertadinha, de madeira, que era pras pessoas trocar de roupa. O Joe, que é o homem, joga pra ela, que ele pensa que é menino, o calção de banho e a bóia. Ela entra na casinha lá. E a gente só vê a cara dela ficar assim assustada, mas a gente não sabe o que é. 

Que era?

Credo que vocês não sabem ouvir história. Pois ela tava de Chico.

Quem é Chico?

Vocês não sabem o que é tá de regra? Menstruação? 

Ahhhh – a gente sabia.

Pois ela tava. E aí vem a cena mais linda do filme. Ela sai da casinha lá, com a boia assim na altura do peito, tampando, sabe? Com calção de banho… aquele céu rosado, meio dourado, a coisa mais linda! Ela olha pra ele e ele pra ela. Ela deixa a boia ir caindo assim devagar e aparece os peitinhos dela. Já tava formando sabe? E daí escorre um sangue assim pela perna dela. Nessa hora ele olha pra ela assim sem acreditar. 

Que que ele fez? 

Termina assim.

Ahhhh

Eu nunca esqueci aquela história. Nunca fui atrás para saber se esse filme existe. Acho que eu tinha medo de ser verdade que depois que você tem mini-seios, um homem que era que nem um pai para você, passe a te olhar com desejo sexual. Mais que tudo, eu tinha muito medo de ser um dia aquela menina que, em plena luz do sol, ia ter as pernas manchadas pelo próprio sangue e os seios expostos para um oceano inteiro. Como aquilo tudo podia ser “lindo, lindo, lindo”?

Pelo rumo que a conversa com minha avó tomava, a gente quando vira “mocinha” se torna uma espécie de mulher em miniatura. Seus conselhos pareciam mais uma condenação do que mimo de vó. Minha vontade era evaporar, liquefazer, congelar, qualquer estado físico era melhor do que aquele em que eu estava, queimando de ódio. Ódio de ter acontecido aquilo comigo. Eu tinha só 10 anos, e não podia haver justiça naquilo. 

Aquilo, a menstruação, eu ainda não sabia, era um dos mais sofisticados instrumentos de dominação patriarcal. Não a menstruação em si, mas os discursos em torno dela. Tratava-se, portanto, de uma questão política, ou melhor, biopolítica. Aciona-se, assim, uma fina tecnologia de controle, um mecanismo de poder, capaz de transformar uma experiência corporal em marca de regulação de si, convertendo o biológico em uma pedagogia da vergonha. Disciplinadas, nós mesmas nos tornamos as guardiãs do silêncio. 

Minha avó não se calava. Então, resolvi chorar, o que ela entendeu como tristeza e não como súplica. Por motivos que eu não sei dizer muito bem, parte daquele discurso regulador não ressoava em mim, e eu já estava cheia daquilo. Foi quando ela resolveu ligar para minha mãe. Se levantou e se deparou com minha prima segurando o lençol manchado nos braços. 

Minha prima ficou parada ali, de pijama, segurando o lençol com as florzinhas derramadas. Vó Nice passou por ela, dando um bom dia de avó e foi para a saleta onde ficava o telefone. Tita, minha prima, tinha um jeito de criança que caiu da cama e um olhar de quem amadureceu da noite pro dia. Estendeu o lençol para mim como se ele fosse um gato fofo, desorganizando totalmente minhas expectativas. Pelo meio do pano embolado, ela alcançou minha mão e a segurou com uma força de um abraço cúmplice. Depois fez uma careta boba, desfazendo aquele drama todo, e a gente riu. 

Atrás da porta, minha avó ainda falava no telefone com minha mãe, tentando decidir o que fazer com o meu corpo. Mas entre mim e Tita, acabava de se firmar um pacto de desobediência. Talvez um dia a gente também encarasse um olhar sem saber se era de cuidado ou de desejo. Talvez também saíssemos de alguma casinha estreita com uma mancha visível escorrendo pelas pernas. Talvez a gente tivesse vergonha, talvez só o alívio de não ter segredos. Naquele sábado, a gente ainda não sabia, mas íamos aprender juntas a lidar com esses persistentes “talvez”. 

Aquilo foi lindo, lindo, lindo! 

Larissa Pelúcio

Livre-Docente em Estudos de Gênero, Sexualidade e Teorias Feministas. Está como assessora da Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (CAADI -Unesp). Atua como professora de Antropologia no campus da Unesp-Bauru (Departamento de Ciências Humanas – FAAC). Integra o quadro de docentes do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, na mesma instituição. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), realizou Pós-doutorado na Université Paris 8 – Vincennes – Saint Denis. Suas pesquisas abordam temas como gênero, sexualidade, saúde, mídias digitais a partir de diálogos com a teoria queer, as epistemologias feministas e os saberes subalternos. É autora do livro “Abjeção e Desejo – uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids” e “Amor em Tempos de Aplicativos – masculinidades heterossexuais e a nova economia do desejo” (Annablume). A pesquisadora é assessora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É líder do Grupo de Pesquisa Transgressões – Gênero, Sexualidades, Corpos e Mídias Contemporâneas.

Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025