Cortina Menstrual

Por Letícia Santos Ferreira

A cortina menstrual é um mecanismo de sensibilização que criei a partir da participação em oficinas de Educação Menstrual com crianças, adolescentes e mulheres cis. Na experiência durante as oficinas, percebi que todas já haviam recebido educação sobre menstruação no convívio em diversos espaços coletivos e privados que elas frequentam, como escola, família, igreja, e também no contato com materiais diversos, como materiais escolares, absorventes em farmácias, propagandas na TV ou no ponto de ônibus.

Todos esses são elementos e espaços que nos educam sobre menstruação e que acabam por reproduzir o modo como nossa sociedade ocidentalizada e colonizada lida com a menstruação: tem que esconder o sangue, não pode falar sobre menstruação, tem que agir como se nada estivesse acontecendo, manter a produtividade nos estudos e no trabalho. Elas todas já chegavam com essa bagagem, mas não necessariamente cientes das consequências prejudiciais que viviam ao encarar a menstruação dessa forma e das implicações negativas que essa narrativa menstrual hegemônica causava. 

E o que o espaço das oficinas tinha a oferecer de diferente? Tínhamos Educação Menstrual, um campo de saberes específicos que busca transformar as narrativas menstruais que prejudicam quem menstrua. Como fazíamos isso? Por meio de acolhimento, materiais didáticos adequados à faixa etária das participantes de cada oficina, conteúdos sobre anatomia e ciclo menstrual passados a elas de maneira acessível e crítica, momentos de ludicidade e de trocas de experiências. Finalizávamos as oficinas com palavras sobre como tinha sido para cada uma estar naquele espaço. Aprendizado, ciclo menstrual, menstruação, absorvente e acolhimento foram algumas dessas palavras. 

Saí dessa experiência pensando muitas coisas. Muitas coisas mesmo! A maior parte delas consegui incluir na minha dissertação de mestrado, em que estudei as relações entre gênero, menstruação e subjetividade. Mas algumas ficaram de fora, e o espaço físico das oficinas foi uma delas. Lembro que na minha defesa, finalizei com uma foto do local em que ocorreu a primeira oficina e falei sobre a potência desse espaço, das cadeiras em roda, dos materiais próximos às participantes, da importância de poder interagir e tocar nos modelos anatômicos, nas camisinhas femininas e em outros elementos que mostrávamos a elas. 

Depois da defesa, fizemos uma mesa de debate sobre ações para dignidade menstrual e essa questão do espaço continuava ali comigo. Eu queria que as pessoas que entrassem na sala para participar da atividade sentissem que estavam entrando em um lugar diferente, em que a maneira de abordar a menstruação não seria a comum. E eu não sabia direito como fazer isso. As participantes afirmavam que saíam das oficinas mobilizadas, até fisicamente, estimuladas a lidar com seus corpos e ciclos menstruais de outro jeito. Então, comecei a pensar em como seria um  mecanismo de sensibilização corporal que contasse e deixasse visível que ali falaríamos de menstruação de um jeito diferente do que é permitido falar na maioria dos espaços, principalmente no espaço na universidade. 

Eu queria algum estímulo que passasse pelo corpo das pessoas, mas que fosse suave e afetiva. Lembrei de quando era criança e ia para casa de uma das tias da minha mãe, era uma casa antiga, “de vó”, e na porta ela sempre deixava alguma cortina, às vezes feita com retalhos de tecido cortados, às vezes feitas de miçangas. Eu amava as cortinas, dava uma sensação de “cheguei na casa da tia”. Lá dentro era quentinho, tinha bolo gostoso sempre e era pequeno, então todo mundo tinha que ficar perto uns dos outros.

Não era sempre que minha mãe me levava lá, então, quando a gente ia sempre tinha assunto pra colocar em dia e eu podia ouvir os adultos falando que fulana ficou grávida, ciclana casou… fofocas de família. Eu me sentia acolhida. E, pensando agora, o que quero quando mobilizo espaços para trabalhar com Educação Menstrual é que as pessoas entrem e se sintam assim, que saibam que lá vai ser legal, vai ser diferente, que a gente vai sentar em roda e conversar, contar o que acontece com a gente, saber o que acontece com as outras e se acolher da melhor forma. Quero que as pessoas saibam, já logo de início, que estão seguras. Quero também que “mudem o clima”.

Foi então que pensei em fazer uma cortina menstrual. Vermelha, é claro, pra dar aquela “chacoalhada” e a pessoa pensar “nossa, o que vai acontecer aqui? O que é isso?”. E pensei que, em vez de miçangas podia colocar informações sobre menstruação, como conteúdos de anatomia e frases com “verdadeiro ou falso”. Para escolher esses elementos, separei os conteúdos que trabalhávamos nas oficinas, revisitei meu diário de campo e os cartazes produzidos pelas participantes e coletei “polêmicas” sobre as quais conversávamos e debatíamos se eram verdadeiras ou falsas.

Com esses materiais em mãos, fiz a cortina com a ajuda da minha irmã e de uma amiga que, junto comigo, fio a fio, cortaram os novelos de lã e me ajudaram a colocar os elementos/”miçangas”. Foi quentinho fazer, colocamos música, falamos sobre menstruação, sobre a minha defesa, sobre as oficinas e sobre os outros lugares em que eu poderia usá-la, sobre jeitos de colocar mais “miçangas”.

No dia do evento, a mesa de debate sobre dignidade menstrual, penduramos na porta e tiramos algumas fotos para registrar. Infelizmente, o dia foi intenso e não tive muitas dessas fotos guardadas, mas tenho essa, um pouco de lado, mostrando a entrada e a mesa que recebeu as convidadas:

Créditos: Letícia Santos Ferreira

Reparei que as pessoas que passavam lá fora olhavam e, se tinha alguém com elas (era hora de entrar nas aulas noturnas na faculdade, então, muita gente estava indo em pares para suas salas), se perguntavam “o que vai ter aqui?”. Tinha gente que veio pro evento e que parou na frente, perguntou se podia entrar, se podia passar por ali. Eu dizia que sim e incentivava entusiasmada que as pessoas entrassem. E teve gente que nem ligou, que só afastou os fios e foi entrando, sem se dar conta do que tinha ali, das “miçangas”.

Terminando de escrever este texto, penso em duas cenas que aconteceram no parque em que eu e minha irmã gravamos este vídeo. Na primeira, uma funcionária e um funcionário do parque nos pediram para tirar a cortina, porque não era permitido amarrar nada nas árvores. O pedido foi educado e os dois se interessaram em saber o que era aquilo, como essas informações sobre menstruação tinham ido parar ali, o que desencadeou uma conversa sobre dignidade menstrual e as oficinas que acompanhei no mestrado. Depois, uma mulher que passeava no parque com a esposa também parou para conversar, falou sobre sua história com a menstruação, leu as informações que estão na cortina e pediu para fotografar, porque é atriz e está preparando uma cena de escola em que uma aluna mancha o uniforme com menstruação.
Esse foi o processo de feitura e a estreia da cortina menstrual, mas penso em continuar com ela. Pendurar em outros lugares, adicionar na entrada das oficinas e coletar as reações das pessoas. Penso em colocar mais “miçangas” (na forma de relatos de menarca, dúvidas sobre menstruação…) e miçangas de verdade. Acredito que possa haver outros desdobramentos e que esse foi um bom mecanismo de sensibilização.

Letícia Santos Ferreira é doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), Mestra em Ciências Humanas e Sociais pela mesma universidade e psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025