Sangue, entre ficção e realidade

Por Ninna Callitris

O sangue na arte perpassa por um longo contexto desde de sua representação até seu uso como material artístico. Compreendo sua simbologia na arte ora como grito (ação) ora como fala (realce) do não dito. A arte que produzi a partir dessa escrita é uma releitura da célebre obra de Francisco Goya Saturno devorando a su hijo (1819-1823) e tenta captar a ideia de grito, relacionando-a com a representação da noção de tempo como simbologia sobre a efemeridade humana. Na obra de Goya, é encenada a maldição de Cronos (ou Saturno, na mitologia romana) segundo a mitologia grega, que narra a previsão oracular de sua deposição por um de seus filhos em consequência a castrar seu pai Urano, governante do universo, por inveja de seus poderes; a partir disso, Cronos começa a engolir todos os seus filhos ao nascerem para tentar impedir que o destino previsto pelo oráculo se concretize. 

Goya representa Cronos como uma figura decrépita agachada devorando o próprio filho desmembrado, como uma representação entre homem e monstro. Seus olhos chamam a atenção na obra, eles expressam o horror de sua maldição: um deus fadado a temer pelos próprios filhos. Aqui, a figura do devoramento representa simultaneidade e supressão temporais: ao passo que os devora, passa a ser não só presente mas também passado e futuro. Assim, Cronos devora a si mesmo, ao passado, ao presente, e, enquanto concretiza a ação, deixa fadado a seu futuro. O horror representa um quê de nojo, de si e do destino, enquanto cumpre sua maldição, sua figura “consiste na imagem corpórea de um presente que devora, mas um presente sendo incorporado pelo passado que já é fantasma do presente: ‘um já que ainda não é e que já não é mais’.” (Andrade, 1998, p.147).  Segundo a autora,

Saturno sobe à superfície da tela de Goya como um ancião que emerge das profundezas, transmutado em Cronos, fantasma em plena operação aiônica na incorporação de sua cria: uma concepção temporal leibniziana. (…) Mas é a própria mudança na natureza que está em processo no quadro de Goya: o ancião, em seu ato de devorar o filho, já é um fantasma em metamorfose pela boca escancarada e voraz com que destrincha um corpo para alimentar-se e assimilá-lo na perpetuação do ato canibal, ou tornar-se “outro”, através da incorporação. (Andrade, 1998, p.148)

Francisco Goya, Saturno devorando a su hijo (1819-1823), 143,5 x 81,4 cm. Madrid: Museo Nacional del Prado.

Goya retrata Cronos de uma forma nunca antes feita. A obra de Peter Paul Rubens, Saturno Devorando Seu Filho (1636-1638) parece leve em comparação, nela o deus é retratado como um senhor de idade mordendo seu filho pequeno, a tela dá destaque à expressão da criança com horror e dor, ao passo que quase não se vê a expressão de Cronos na obra. Em comparação, a obra de Goya, Cronos segura fortemente o corpo do filho  decapitado e desmembrado, o horror e os sentimentos retratados estão centrados na figura do deus e na iluminação escura e sombria da pintura. Nela, Cronos está tão aterrorizado quanto o próprio espectador, indagando sobre si e sobre os medos mais profundos da humanidade (Santos, 2018).

Peter Paul Rubens, Saturno Devorando Seu Filho (1636-1638), 182,5 x 87 cm. Madrid: Museo Nacional del Prado.

A sensação de olhar para o quadro de Goya, ora com um certo horror ora com impossibilidade de desviar os olhos, remonta outra obra celebrada, O Grito (1893) do pintor norueguês Edvard Munch. Por mais que sejam contextos históricos e temporais diferentes, ambas conseguem retratar o medo humano do futuro e o receio da própria humanidade.

Edvard Munch, O Grito (Skrik), 91 x 73,5 cm. Oslo: Galeria Nacional.

A pintura de Munch retrata ansiedade e desespero, a feição humanóide andrógina retrata dramaticamente os sentimentos, em contrapartida as demais figuras da obra passeiam aparentemente tranquilas. O céu vermelho como sangue se juntando com o azul forte do mar fazem uma contraposição impactante. Pessoalmente, interpreto o desespero desse grito artístico como consequência da Modernidade nas décadas finais do século XIX, como um autorretrato do espectador transpassado pelas vicissitudes da vida moderna. As cores da pintura, sobretudo o vermelho, atuam como realce, o espectador é engolido pela obra ao mesmo tempo que a digere, na tentativa de compreender a si mesmo e não ser devorado pela Modernidade. 

Saturno devorando a su hijo, de Goya, faz parte de uma série de quatorze murais pintados diretamente nas paredes de sua casa entre 1820 e 1823, a coleção é chamada de  Pinturas Negras é parte permanente do acervo do Museu del Prado em Madrid. O artista as produziu enquanto o país passava pela Guerra de Independência Espanhola (1808-1814),  um confronto entre as tropas de Napoleão Bonaparte e o rei da Espanha, Fernando VII. Em reclusão em sua casa perto de Madrid, Goya pinta os horrores da humanidade, os sentimentos humanos e de des-humanização que a guerra consegue trazer. O horror, ou terror, é aqui tratado como forma de auto entendimento, quase como um reconforto num mundo de pesadelos (Cavalcante, 2023).

Um aspecto que difere a pintura de Goya de outras representações de Cronos, principalmente a de Rubens, é a presença do sangue. A tintura vermelha percorre a pintura  por onde já houveram membros, saindo da boca e até o corpo do filho. O sangue vem para demonstrar a crueza do olhar, o horror sem medir os limites da época em que foi pintado. Na obra de Munch, o céu vermelho e laranja fazem parte principal da composição da potência da obra, que remonta a ideia de sangue, ansiedade e desespero. 

Por outro lado, pintar o sangue (ou com o sangue), explicitamente, traz um outro elemento de profundidade e significado à arte, não só como forma de denúncia da arte, mas também como realce e autoconhecimento das ramificações da humanidade. É trazer no papel, nas pinceladas ou na escultura o que há de mais íntimo e o que mais nos junta não só como humanidade mas como seres vivos. O sangue traz essa pungência de entremeio entre a vida e a morte. Na obra de arte,

A composição é “sangue”, dor, humilhação, violência e morte. Se for considerado o julgamento de muitos estetas, as imagens e os espaços ambientais que os artistas retratam, extrapolam o campo da “ficção” e invadem o campo da poesia. O que Goya construiu durante a sua existência foram reproduções de relatos reais, sonhos horrendos e poesias. (Queiroz, 2010, p.74)

A representação do sangue diretamente na arte é polêmica. O surgimento de fluidos corpóreos e outros elementos orgânicos nas obras atuam como formas de se interpretar o mundo, transborda a imaginação e atua como produção social, política e pessoal, mas sem necessariamente se preocupar com a fealdade (Queiroz, 2010). Goya traz o sangue como composição, sem ele a obra não traria a sensação de dor, violência e de vida e morte. Dizer o não-dito é extrapolar o limiar entre ficção e realidade, é ser simultaneamente política e poesia e atuar como realce da crueza humana, dando luz às vicissitudes da realidade.

Como o destaque do sangue na arte, Hermann Nitsch foi um dos principais artistas que usou o sangue na sua forma mais crua. Em sua obra, o sangue “uma vez mais usado na sua forma material, firmando o seu caráter espiritual, assumindo o seu lado ‘mágico’ e dando à obra uma energia cósmica ‘sobrenatural’ ” (Queiroz, 2010, p.122), torna-se forma e conteúdo ao mesmo tempo, rompe com as ideias tradicionais de materiais e dos próprios objetos da arte. Nas Painting Performance (1987), o artista demonstra a ideia de arte como ação através da performance visceral com sangue e entranhas animais.

Hermann Nitsch, Painting Performance (pintura performance). Vienna Secession, 1987.

Os materiais de produção de arte passam a ser composição essencial da própria sensação que a obra tenta captar. Um dos exemplos mais ilustre e literal disso é a obra Self (1991) do artista Marc Quinn. A escultura Self (autorretrato) demandou a retirada de seis litros de sangue do próprio artista ao longo de cinco meses consecutivos, a obra é uma escultura do rosto do artista feita inteiramente de sangue e fica em uma câmara refrigerada para impedir que o material retorne ao seu estado líquido. Cria-se uma tensão, uma demonstração material do quanto o artista entrega para a própria arte, sob uma indissociação entre produto e produtor e entre arte, vida e morte. Além disso, remete à arte como elemento vivo, como linguagem, como comunicação.

Marc Quinn, Self, 1991, 208 x 63 x 63 cm. Londres, Grob Gallery.

A partir dessas obras, trabalhei com a ideia de temporalidade e sangue menstrual na obra autoral O que o sangue diz sobre o tempo (2025). A arte é uma releitura da pintura Saturno devorando a su hijo (1819-1823) de Francisco Goya, trazendo destaque para a expressão de Cronos, ressaltando os olhos amedrontados e o sangue que escorre da boca. O material utilizado para retratar o sangue é composto por sangue menstrual e cola (para impedir a oxidação do sangue e, com isso, mudança de coloração), a base primária do desenho (sobre papel e jornal) foi feita com sangue puro e, em seguida, foi pintada uma segunda base com tinta acrílica aguada e sangue (houve um intervalo de quinze horas entre uma camada e outra), numa tentativa de remontar a prática do afresco e fazer com que as cores se misturassem. Depois de seco, foi utilizado lápis de cor de diversas cores para compor os traços e trazer detalhes ao rosto e cabelo da figura. 

No desenho, Cronos é a única figura e é retratado com uma fisionomia menos masculinizada, como a de Rubens, o rosto andrógeno tenta realçar a intransponibilidade dos efeitos do tempo na humanidade. O sangue menstrual é utilizado justamente como elemento marcador temporal, numa concepção de começo e término da reprodutibilidade. Dessa forma, é como se o devoramento do futuro e a simultaneidade entre passado, presente e futuro retratados por Cronos devorando seu próprio filho estivessem transpostos nessa arte pelo sangue menstrual.

Ninna Callitris, O que o sangue diz sobre o tempo (2025), 19,4 x 23,9 cm.

O sangue menstrual em si, não somente seu uso na arte, está envolto numa ideia de tabu, sob um limiar entre sagrado e profano. Sua utilização em arte como material é político,  traz à frente um conteúdo corpóreo que é dito como sujo, cuja presença é moralmente acobertada. A menstruação é o não-dito, está lá, “implícito”, mas não se pode dizê-la, então, trazê-la como material de arte é tentar trazer realce à realidade acobertada. Seu uso traz impacto à produção, “Sangue, então, pode não ser boa tinta, mas isso não diminui seu impacto nos espectadores quando eles percebem que os retratos foram feitos com tal substância corporal” (Manica; Rios, 2017, p.5, tradução própria).

O sangue menstrual, assim como Quinn em suas obras, traz em tensão as próprias fronteiras corporais (Manica, 2017), entre a ideia de o que é interno e externo à nós, enquanto seres vivos e espectadores. No desenho, o sangue escorre da boca de Cronos, como uma analogia do percurso do tempo, como um regurgitar da noção de passado, presente e futuro e da própria humanidade, enquanto horror e vitalidade.

Ninna Callitris, pseudônimo de Anna Clara Cypreste, bacharela em Ciências Sociais com ênfase em Sociologia e Ciência Política (IFCH/Unicamp), bacharelanda em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia (IFCH/Unicamp) e mestranda em Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor (IEL/Unicamp).

Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025