Apesar de frequentar o interior da Bahia desde criança, conheci o jarê depois de adulta, quando decidi retornar às minhas origens e conhecer minha família a partir da minha própria ótica.
Foi numa dessas viagens e conversas com meus familiares que ouvi falar sobre o jarê e as festas de caruru na Chapada Diamantina.
Vou ser bem sucinta quanto a expor a definição desta religiosidade, afinal, uma reportagem não daria conta da dimensão de uma manifestação que existe desde meados do século 19. O jarê, na minha percepção, é uma religião de terreiro – conceito cunhado por Ivaldo Marciano de França Lima – e existente apenas na Chapada Diamantina, principalmente nas regiões de Lençóis, Andaraí, Itaetê, Utinga, Redenção, Ubiraitá, etc.
Essa manifestação tem fortes influências indígenas, umbanda, espiritismo, catolicismo e candomblé, concentrando-se principalmente no nagô, angola, jeje e ketu.
Apesar de carregar muitas características dessas religiosidades, o jarê possui sua própria identidade. Isso se torna visível em seu modo de funcionamento, no qual uma pessoa com o cargo de curadora faz um atendimento, em que realiza um diagnóstico do problema do paciente e, a partir disso, pode ser feita uma receita de banhos e outras metodologias alternativas. Em caso de tratamento, também existe o que é chamado de “trabalho”, no qual é feito um preparo maior, em que se realiza um ritual em forma de festa, ao som dos atabaques e samba de caboclo. É nesse momento que a magia literalmente acontece! Onde se reza, samba, as entidades descem em um momento de incorporação e se vivencia um ritual de cura.
Pensando em todo esse processo, quero ressaltar como as casas de jarê lidam com a menstruação. Para abordar esse assunto, vou pontuar como algumas religiosidades que influenciaram no desenvolvimento do jarê também lidam com a menstruação e o sangue dentro de suas comunidades.
Povo Karipuna
A partir da aula “Menstruação (djispoze e lalin) entre as mulheres Karipuna” do curso Sócio-Antropologia da Ciência e Tecnologia – que você pode conferir na introdução desta revista -, a professora Ana Manoela Primo dos Santos Soares, da Universidade Federal do Pará (UFPA), apresentou seu artigo “Sangue feminino: Quando as mulheres Karipuna encontram com a lua”. Foi durante este feitiço que passei a me questionar sobre a influência indígena presente no jarê, inclusive no aspecto da menstruação.
Foram poucas as leituras que realizei em que foi citado mais que o nome dos povos indígenas nativos da Chapada Diamantina e a informação mais completa que localizei até a escrita deste texto foi encontrada no livro Cantigas do Jarê, que relata a presença de indígenas dos grupos linguísticos Tupi, Cariri e Gês, e os grupos étnicos Aracapás, Mongóis, Galaches, Ocrens, Oris, Cariacãs, Paiaiás e Maracás.
Para termos uma perspectiva de um povo indígena, quero trazer as Karipunas porque, entre as diferentes formas de menstruar, a Ana Manoela apresentou algumas questões que podem se relacionar com a forma que se lida com a menstruação no jarê.
Segundo Ana, as reclusões que as mulheres Karipuna praticam ao não irem às roças, rios, igarapés, furos d’água, matas, entre outros lugares, quando menstruadas, nada mais são que acordos entre o povo Karipuna e os karuãnas.
Para o povo Karipuna, os Karuãnas são caracterizados por serem pessoas que vivem no Outro Mundo ou no Mundo Invisível e que apenas os pajés conseguem ver e se comunicar. “Karuãnas podem provocar doenças e até matar; outros gostam de ter filhos com as mulheres visíveis. Os karuãnas, ou “bichos do mundo invisível”, são grandes médicos, doutores, cientistas que, durante o turé, são convidados pelo pajé para participar da festa, tomar muito caxixi e fumar os grandes cigarros de tawari”.
Tal relação entre os Karuãnas e as pessoas menstruadas envolve uma dinâmica territorial onde é necessário cumprir resguardos da menstruação. “Não se banhando no rio, não entrando nas matas e não participando de rituais, neste último caso, não sendo autorizadas pelo pajé, para que não fossem encantadas pelos Karuãnas”, relata a professora. Outra situação abordada por Ana é o fato do sangue menstrual ser interpretado como algo que pode sujar o ambiente e, quando um homem tem contato, pode causar até mesmo má sorte, seja no trabalho convencional na cidade ou na floresta envolvendo a pesca e a caça.
Essas reflexões geraram uma inquietação porque dialoga com o que a Ana chama de “o dono do lugar”. Os Karuãnas moram em rios, lagos, igarapés, poços, cavernas e matas, portanto, podemos entender que são donos desses lugares. Ao dividirmos este espaço com o Karuãna, devemos respeitar o dono da casa. A professora aborda em seu artigo o significado de “donos dos lugares” em articulação com as pessoas menstruadas, a partir da perspectiva da karipuna Bruna Almeida “Na cosmologia Karipuna, o corpo das mulheres e o território se inter-relacionam de diversas formas, principalmente através da menstruação”.
Catolicismo
No jarê se cultua diferentes santos católicos, entre eles Santa Bárbara, Cosme e Damião e Doum, São Sebastião, São Roque, Santos Reis, Santo Antônio, etc. Entendendo que o sangue se faz presente de formas diferentes no catolicismo, acredito ser importante também pontuar algumas questões.
Segundo a pesquisadora Ligia Barros Gama, uma das representações mais primordiais do sangue é a consagração do vinho. Este líquido sagrado toma seu mais evidente significado na comunidade católica, sendo identificado com a mesma relevância no ritual da eucaristia para obter a comunhão sagrada, que acontece através da ingestão do pão (hóstia) e do vinho, “após o processo de transubstanciação se consagram em Corpo e Sangue de Cristo”.
Ainda sobre a simbologia em torno do vinho, em seu trabalho chamado Kosi Ejé Kosi Orixá, Lígia evidencia os pensamentos de Chevalier e Gheerbrant onde “o vinho é geralmente associado ao sangue, tanto pela cor quanto por seu caráter de essência de planta: em consequência, é a poção da vida ou de imortalidade”.
O sacrifício é algo recorrente na história bíblica e o sangue também tem a sua atuação no aspecto de simbologia, como pode ser notado no caso da história de Santa Bárbara de Nicomédia. Pensando nisso, Lígia também apresenta como o sangue na perspectiva do catolicismo tem interferido na visão do sacrifício no candomblé: “Segundo o mito, Jesus Cristo consome seu próprio sacrifício quando anuncia: ‘Tomai, todos, e bebeis, este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos, para a remissão dos pecados’ (Mar 14, 24)”. De acordo com a pesquisadora, essa passagem da Bíblia pode ser a razão pela qual alguns cristãos condenam o sacrifício animal no candomblé, alegando que o próprio Jesus Cristo fora sacrificado em nome da humanidade, substituindo daí por diante toda e qualquer imolação animal.
Candomblé
O trabalho de Lígia Barros apresenta uma percepção do sangue no candomblé numa perspectiva a partir do pensamento de Durand (2002) chamado de inversão de sentidos: “O sangue menstrual enquanto desgaste de axé, não desejável, torna-se aceitável e sinônimo de poder, quando é associado à fertilidade”.
Isso fica evidente em sua pesquisa quando traz como referência Oxum e a grandiosidade do seu poder de criação a partir da citação “somente aquelas que podem sangrar podem ter filhos” (PRANDI, 2001: 509).
Quando Lígia cita Augras (1983) em seu texto, ela relaciona também a fecundidade das Grandes-Mães aos pássaros com a multidão dos descendentes, simbolizada através das penas do ecodidé, associando a fertilidade também ao rito iniciático. “Morre-se para uma vida anterior ao rito para se nascer em uma nova vida. Desta forma, no que se refere ao ritual de iaô, Augras ainda nos diz que: a iniciação é um nascimento, e o poder da fecundidade tem que estar presente. Pois Oxum mostrou que a menstruação, em vez de constituir motivo de vergonha e de inferioridade das mulheres, pelo contrário, proclama a realidade do poder feminino, a possibilidade de gerar filhos”.
Além disso, nessa inversão de valores também é presente o sangue menstrual atrelado à impureza no contexto do candomblé, afastando as mulheres de certos afazeres, rituais e espaços sagrados e determinando comportamentos diferenciados no período das regras, porém a autora ressalta: “a concepção de impureza para o “povo de santo” distancia-se daquela pregada pela cosmovisão judaico-cristã que atrela o estado de impuro à prática do pecado”.
No candomblé, ao menstruar, é muito comum ainda escutar que o “corpo aberto” torna a pessoa vulnerável dentro do espaço sagrado, conforme explicação da iakekerê Maria Helena Sampaio: “O sagrado torna-se destruidor ao ser contactado em condições inadequadas. O corpo necessita estar forte para a experimentação do sobrenatural, e um corpo forte consiste num axé mantido e intensificado, condição esta antagônica ao estado menstrual.
Portanto, neste período, conforme citado também por Lígia, é vetada a participação feminina no preparo dos alimentos ofertados aos santos, sua presença no peji, no xirê, sendo igualmente impedida sua permanência no salão em dias de obrigação e toques, entre outros. “Uma filha-de-santo não deve usar seu colar [guias] quando está menstruada” (LÉPINE, 2004: 39), visto que o colar de contas também pertence à dimensão sagrada que exige, em seu contato, a pureza do adepto”, encerra a autora.
Jarê
É partindo principalmente da percepção do candomblé, uma das religiosidades mais presentes no jarê principalmente pela sua relação ancestral com as mulheres nagôs, que apresento a percepção de praticantes do jarê sobre a menstruação. É válido ressaltar que, para alguns praticantes, nem sempre o jarê é associado a este nome, podendo também ser conhecido como variante do candomblé de caboclo, candomblé e/ou umbanda.
De acordo com Pai Cobra do Terreiro Saravá localizado na Comunidade das Gamelas e Mãe Nega do Terreiro de Iansã, em Itaitê, ambos com atuação na região de Andaraí, a pessoa quando está no período menstrual não pode ter contato com o peji, incorporar, tocar e entrar no quarto de santo.
“A mulher estando menstruada significa o que: o corpo aberto. Não pode pegar em couro mesmo, que é os atabaques, não pode pegar, não pode usar roupa de caboclo, não pode entrar no centro, onde fica os guias, os orixás. Até pra sambar não vem os guias, porque significa que a mulher tá de corpo aberto”, relata Mãe Nega.
Pai Cobra também reforça a mesma mensagem. “A mulher quando está menstruada, se ela pensar, ela nem na casa de umbanda ela pisa, porque tanto atrapalha a vida dela, como atrapalha a do chefe quando ele é mais fraco do que a mulher quando está menstruada. Só em você estar lá, já não presta, você já não é satisfeita. Por que o contratempo vem a você, não vem pra mim. Tá entendendo? Vem pra você que tá menstruada”, relata o curador.
Outro ponto que é muito levantado por Pai Cobra é a questão de realizar um “trabalho” estando menstruada, o quanto esta energia é intensa e pode prejudicar tanto quem realiza o trabalho quanto quem recebe. Segundo Pai Cobra, se você está menstruada e vai para o quarto do santo, nem seu guia baixa em você, gerando uma possibilidade da pessoa que está fazendo o “trabalho” se prejudicar.
“Se você for fazer uma coisa pra mim, não vale, não é resolvido, porque você tá na sua quadra, não tem validade de nada, viu? É porque a parte do candomblé é uma parte sensível, é uma parte muito fina. É uma parte que você tem de ter em dieta, ou você tem em dieta, ou não resolve o problema do povo. Como é que você é dona do seu problema e você vai estar nesse problema?”
Mãe Nega conta como ela se posiciona em relação a estar menstruada e ser necessário realizar um “trabalho”. “Eu, porém, quando tô menstruada não trabalho, nem no meu centro eu entro, que é um significado de respeito, que eu estou de corpo aberto. Pra pegar no couro, não tem que se misturar com homem, tem que estar com o corpo limpo”, relata a curadora.
Conclusão
Esta reportagem tem como intuito causar reflexões sobre a relação da menstruação e o sangue com a religiosidade, apresentando principalmente a perspectiva do jarê, religião que é pouco conhecida fora do estado da Bahia. Que possamos, a partir dessas informações, nos atentar quanto às nossas percepções e experiências pessoais que interferem na nossa interpretação de mundo, principalmente quando o antropólogo Roy Wagner (2017) diz que, “todos observamos a partir dos pontos de vista da cultura à qual pertencemos”.
Encerro esse texto com a fala sábia da Ana Manoela com sua perspectiva do povo Karipuna, em que afirma o fato da menstruação ser uma categoria instável, ela não aparecerá da mesma forma nos diversos contextos socioculturais e, mesmo em único povo, os costumes relacionados a ela não necessariamente se manterão estáticos, mas se modificarão com o passar dos anos.
Referências bibliográficas
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ZANARDI, Paula Pfüger; PINTO, André Castilho. Memória das Cantigas do Jarê. 1. ed. Lençóis, BA: Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC, 2021.
Andressa Santos é jornalista (UNIMEP), multiartista e pesquisadora. Com quase dez anos de experiência na área de comunicação, sua trajetória concentra-se nos campos da cultura e da tecnologia. Foi fundadora da filial Baque Mulher Piracicaba e desenvolveu trabalhos artísticos ligados a manifestações afro-religiosas do Nordeste e do interior paulista. Atualmente, é mestranda no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp), onde desenvolve, com bolsa Capes, uma pesquisa sobre o jarê, a partir da análise de discurso materialista. Também integra a associação carnavalesca Bloco das Bárbaras, composta exclusivamente por mulheres, que reivindica o direito à ocupação da rua.
Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025