Entrevista: Dona Dé e os mistérios do Sangue e do Barro

Uma conversa com Valdete da Silva, mulher indigena, Mestra do barro, Louceira e anciã Kariri-Xocó, entrelaçando tradição, corpo que menstrua e a tradição barro no fazer imaterial da Loiça Kariri-Xocó. 

Por Verena Barros Hauschild

Créditos: Verena Barros Hauschild

 

Entrevistadora: Bom dia, Dona Dé! É um prazer enorme conversar com a senhora hoje. Como estão as coisas por aí? 

Dona Dé: Bom dia, minha filha. Tudo bem, graças a Deus.

 

Entrevistadora: Combinamos de trocar umas ideias sobre o seu fazer como louceira e, em especial, sobre a relação entre o ser mulher, a menstruação e as tradições. Para começar, a senhora poderia nos contar como foi para a senhora, ao longo da vida, menstruar e ser uma mulher que trabalha com o barro? Quais eram as questões da tradição que envolviam esse período? O que podia e o que não podia ser feito? 

Dona Dé: Olhe, Verena, quando eu menstruava, tinha muita coisa que eu não fazia. Trabalhar, eu trabalhava menstruada, isso sim. Mas tirar o barro, não. Isso era um regime nosso aqui, a gente não gostava de ir tira o barro menstruada. Esperava passar os quatro dias… no quinto, a gente voltava a tirar o barro. Mas outras coisas, eu fazia tudo. Menos ir buscar o barro mesmo. Às vezes até ia, mas meus meninos cavavam e eu só trazia. E a menstruação… eu passava quatro dias, mas trabalhava de tudo. Tinha as dietas também: a gente não comia coento, não chupava laranja, minha mãe falava que não podia comer batata. Muitas coisas a gente não comia menstruada. 

 

Entrevistadora: Interessante essa distinção entre trabalhar com outras coisas, inclusive o barro, acompanhar os meninos até o barreiro mas não ir tirar . E o que a senhora sentia que havia de diferente nesse período? Havia alguma crença sobre o sangue menstrual e o trabalho com o barro? 

Dona Dé: É que… a gente ficava de corpo aberto, né? Essa era a nossa crença. Estando menstruada, a gente evitava certas coisas.

Entrevistadora: E essa relação com as “veias do barro”, como a senhora já me mencionou algumas vezes? Como a senhora vê essa ligação do barro com o sangue da mulher? Até onde essas coisas se misturam na sua visão? 

Dona Dé: É tudo isso que você falou. Nós, menstruadas, invitava muitas coisas. Eu mesma invitava muita coisa. Quando eu estava menstruada, não saía para pescar, não saía para tomar banho no rio, não ia. Tudo isso que você pensa de espiritual e tradição espiritual, é isso mesmo que acontecia com a gente, acontece com nós aqui. Se tinha uma pescaria, nós não ia pescar. Se tínhamos que ir vender, nós não ia vender. Por quê? Porque nós tínhamos o corpo aberto. 

 

 

Créditos: Verena Barros Hauschild

Entrevistadora: Interessante essa ideia do “corpo aberto”. Do tempo em que venho acompanhando vocês aqui na aldeia, entendi que “corpo aberto” e “corpo fechado” é isso da gente estar com o corpo físico mais ou menos vulnerável, por exemplo na menstruação, são muitas as “histórias” que estão acontecendo dentro do nosso corpo para o sangue estar descendo, para mim é um ciclo cheio de detalhes e que muda muito como eu me sinto emocionalmente. Entendo a fala da senhora, do “corpo aberto” como uma queda na imunidade, na energia vital, nesse fortalecimento mesmo que a gente sente na matéria mesmo. E como isso se relacionava com o trabalho com a cerâmica, com o fazer da Loiça, especificamente com o barro? 

Dona Dé: Eu não saía para ir trabalhar no pote (peça cerâmica). Eu trabalhava porque o barro já estava em casa. Eu trabalhava, mas só começava a trabalhar na cerâmica de três dias em diante. Para queimar, eu não queimava. Só mesmo quando estava boa. Ficava boa nos quatro dias. Aí tudo isso eu começava a fazer. Mas tudo isso que você pensa, que você está dizendo, tudo isso é a realidade. O acontecimento com a gente aqui é assim mesmo. Nós não saía para pescar, eu não saía para vender, eu não saía assim. Eu tinha minha… Eu guardava meu resguardo dentro de casa para não andar em negócio nenhum, porque de qualquer maneira nós estávamos de corpo aberto. Nós quando estamos menstruados, nós ficamos de corpo aberto. Aí nós evitamos tudo isso, né? Os trabalhos de cerâmica, nós não tínhamos que tirar o barro. Eu ia, mandava meus meninos ir. Eu ia, mas eu não entrasse no barreiro para cavar o barro. E tudo isso que você pensa é uma realidade. 

 

Entrevistadora: Dona Dé, agradeço muito por essas primeiras palavras. E pensando nessa relação com o barro, para mim, o pote muitas vezes remete a um útero, né? Assim, o formato… E se fala que somos feitos de barro, moldados de barro. A senhora já pensou sobre isso quando fala das “veias do barro”? 

Dona Dé: [Pausa para reflexão] 

 

Entrevistadora: Quando visualizo, penso assim: pelas nossas veias do corpo humano corre o sangue. E aí as veias do barro, quase como se o barro fosse como sangue, como se ele desse vida para um corpo, para um território. O que a senhora pensa sobre isso que estou dizendo? Que imagens passam pela sua cabeça? 

Dona Dé: É tudo isso que você falou, tudo isso. O pote tem uma função muito importante dentro das nossas tradições, ele guarda a vida que é a água. A melhor água pra nois aqui é a água de pote. E nós não tem homens fazendo louça só mulheres. Isso já mostra muito. 

Créditos: Verena Barros Hauschild

Entrevistadora: E agora que a senhora não menstrua mais, como a senhora vê essa mudança? O que mudou na sua vida? Mudou algo na comunidade quando uma mulher deixa de menstruar? 

Dona Dé: Depois que eu parei de menstruar, minha vida foi outra, minha vida é outra. Eu menstruei até os quarenta e nove anos. Parei e, graças a Deus, nunca tive nem uma cólica, nunca tive nada. Ainda hoje estou saudável, saudável refém a minha menstruação. E tudo bem, refém a menstruação. Depois que eu parei, que eu parei de menstruar, tudo bem. Eu fiquei, fiquei sabia, trabalhando de tudo e nunca tive nada, graças a Deus. 

Entrevistadora: Dona Dé, muito obrigada por compartilhar suas experiências e saberes conosco. Foi uma conversa muito enriquecedora.

 

 

Valdete da Silva, de apelido Dé, é anciã indígena Kariri-Xocó, hoje com sessenta e quatro anos, reconhecida dentro e fora da aldeia como Louceira. São chamadas de louceiras as mulheres, com média de 40 a 65 anos de idade, que fazem panelas, caçarolas, frigideiras, potes e cuscuzeiros de barro, um trabalho considerado como parte fundamental de sua cultura. Pesquisas demonstram que esse trabalho das Louceiras, do tronco indígena Natu, Kariri e Xocó, remonta há 400 séculos. Tendo sido seus antepassados dos tempos pré – colombianos. 

Atualmente os Kariri-Xocó são uma população de 4.500 indígenas. Vivem às margens do Baixo São Francisco, para eles o sagrado Opará – Rio Mar, no Nordeste brasileiro, no município de Porto Real do Colégio – Alagoas. 

Contato – acc.sabuka.kx@gmail.com

Verena Barros Hauschild, Ambientalista, Indigenista, Gestora em negócios da Sociobiodiversidade, Mentora em Fortalecimento Institucional/ Organizacional, Bacharel em Comunicação (ESAMC), Gestora de Pessoas (FGV) , Mestranda em Divulgação Científica (Labjor – Unicamp),  Pesquisadora e Ilustradora. Verena atua como Consultora e Facilitadora para “Travessias” individuais e coletivas – em busca de outras maneiras de existir e sistemas emancipadores. Compondo instituições e associações socioambientais como conselheira em estratégias, sua prática reflete um profundo engajamento entre o planejamento estratégico, agroecologia, permanência nos territórios e a regeneração planetária. Nascida em Taubaté, no interior do Vale do Paraíba, entre serras, é também terapeuta nos métodos Reiki Usui, Florais de Bach e Cristaloterapia.

Revista Sangro
Labirinto, Labjor, Unicamp
Junho de 2025