Profecias passadas e futuros latentes: especulações como ferramentas de pensamento

Acho que foi no começo de 2021. Não me lembro como, mas chegou até mim uma proposta super interessante: antropólogos da Universidade de Osaka, no Japão, estavam convocando grupos ao redor do mundo para a construção de uma exposição online e coletiva composta por objetos fabricados durante um exercício de ciências sociais e ficção especulativa.
Batizado de “FICT” (Fragmentary Institute of Comparative Timelines), o projeto propunha que cada “fragmento” (grupo de pessoas) criasse tal “objeto” a partir de uma situação ficcional determinada por eles. Ao ler a descrição de tal situação disparadora, meu estômago revirou e um fogo tomou conta de mim. O nome da proposta era “Diminutivo Europeu”:

nessas linhas do tempo, a(s) doença(s) conhecida(s) como “Peste Negra” ou “Peste” desencadearam uma série de eventos que desautorizaram ou rapidamente encerraram tentativas de países do que foi chamado de “Europa” de invadir e colonizar grande parte da Terra.

Busquei pessoas queridas que topassem esse desafio comigo. Vieram amigues da antropologia, música, artes, linguística. E trabalhamos durante meses em nosso objeto, marcado por um princípio que acordamos entre nós: a recusa em imaginar um mundo onde nós, frutos diretos da violência colonial, não existíssemos. Isso seria fácil demais, e resolveria sem nenhum tipo de pensamento crítico o “problema” que é a nossa existência. Insistimos em nos manter vivos. O que surgiu disso foi uma espécie de “diário de sonhos”, uma armadilha comunicacional que criamos para tentar lidar com o que consideramos como central nesta proposta: o perigo constante – e talvez eterno – do desejo colonizador.
Durante o processo de criação, acionamos nossas bagagens acadêmicas. A própria ideia de construir uma armadilha veio da antropologia: por um lado, a bonita proposta de “armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas” de Alfred Gell, e por outro lado os conhecimentos ameríndios sobre armadilhas de caça e de captura. A exposição online ainda não está pronta, mas tivemos alguns encontros com outros fragmentos para compartilhar os resultados. O que notamos foi uma certa dificuldade em escapar das ferramentas de pensamento coloniais. Por exemplo, alguns fragmentos europeus escolheram etnografias e museografias para abrigar seus objetos, enquanto alguns fragmentos asiáticos projetaram um mundo onde todos usavam quimono, resultado de uma colonização sino-japonesa.
Muitas pensadoras vêm nos convocando à retomar nossa capacidade de imaginar outros mundos possíveis. A ficção científica especulativa vem sendo apontada como uma ferramenta para abrir essas possibilidade. Aqui no Labirinto já realizamos experiências neste sentido. Espero que o relato desta experiência possa contribuir com mais iniciativas potentes em utilizar nossos conhecimentos para a formulação de profecias passadas e de futuros latentes.

 

Legenda da imagem: Printscreen do objeto criado pelo fragmento São Paulo durante o projeto Fict. Desenhos de Chico Jalala.

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