Algumas dicas de ficções científicas para quem gosta de antropologia e tecnociências

A ficção científica vem ganhando espaço dentro das pesquisas acadêmicas em antropologia, em especial aquelas que possuem como tema as tecnociências. Nós aqui no Labirinto temos interesse pelo tema, além de já termos experimentado coletivamente a escrita ficcional. Autores como Donna Haraway e Eduardo Viveiros De Castro vêm apontando para a ficção e a especulação como formas de exercitar nossa capacidade analítica e imaginar outros mundos possíveis.
Neste post, trago algumas dicas de ficções científicas para adensar nosso repertório. É um pequeno recorte pensando a partir da minha experiência dentro do universo da antropologia e filosofia da ciência e tecnologia, e os insights e conexões que fui capaz de elaborar enquanto entrava em contato com as obras aqui apresentadas. São obras que abordam temas como internet, cognição, relações multiespécies e os tensos enlaces entre as ciências ocidentais e conhecimentos tradicionais, como a magia. Adoraria estender essa discussão, então se você já entrou com alguma dessas obras ou tem outras recomendações, fique à vontade para deixar um comentário no post.
Bom mergulho!

A cientista guerreira do facão furioso, de Fábio Kabral (livro, português, 252 páginas, 2019, Editora Malê)
Com esse título, como não ficarmos curiosos? Este é o segundo livro da coleção afrofuturista do escritor carioca Fábio Kabral. O autor mistura elementos afrobrasileiros ao gênero afrofuturista, nomeando sua obra com o poderoso nome de macumbapunk. Neste livro, seguimos a trajetória de Jamila Olabamiji, moradora de Ketu Três, lar do povo melaninado, filhos dos Orixás. O sonho de Jamila, filha de Ogum, é se tornar a maior engenheira da cidade. Mas ela ainda é uma jovem de uma classe popular, saindo da adolescência. Acompanhamos no livro as transformações de Jamila, em uma mistura muito interessante de dramas comuns ao nosso dia-a-dia com exercícios especulativos de uma realidade regida por lógicas socio-tecnológicas afrocentradas.

Hoetep Blessings, de Tabita Rezaire (vídeo-arte, inglês, 12’28”, 2016)
Esta é uma daquelas obras que bagunçam os limites entre ficção e documentário, o que eu particularmente amo. Tabita Rezaire é uma artista “new media” de origem francesa, com raízes na Guiana e Dinamarca. A obra da artista tem como um dos principais temas a noção de cybercolonialismo, abordando as estruturas racistas, classistas e sexistas da internet. O vídeo-ensaio Hoetep Blessings é um exercício de pensamento-ação decolonial, oferecendo para nós conexões entre tecnologias essenciais para o funcionamento da internet e antigos conhecimentos não-ocidentais, como por exemplo a incrível co-relação entre o protocolo http e a deusa egípcia Hoetep.

Duna, de Frank Herbert (minissérie de TV, inglês, 265’, 2000)
Adaptação da série de livros homônima de Frank Herbert de 1965 (disponível em português), a minissérie segue a história de um planeta distante chamado Duna, local desértico onde humanos convivem com um verme gigante que produz uma droga chamada “spice”. Duna é uma daquelas série de impérios intergalácticos, a la Star Wars e Star Trek, mas neste universo as tecnologias digitais foram banidas – não se sabe exatamente porquê – há 10 mil anos atrás. Todas as tecnologias de Duna são biotecnologias, como por exemplo viajar no tempo, sendo que a base para isso é justamente o consumo de spice. Acompanhamos as disputas pela posse do planeta, dos vermes e da droga. O que é muito surpreendente é que Frank Herbert, leitor assíduo de antropologia, conseguiu provocar em nós uma confusão avantgarde: ao longo da história começamos a duvidar quem controla quem, os humanos controlando os vermes ou os vermes controlando os humanos. Duna traz um pensamento incrível que hoje poderíamos nomear “multiespécies”, além de caracterizações profundas das diversidades de culturas humanas e suas relações com seus ambientes – característica que infelizmente a minissérie não é capaz de expressar, com seu casting absolutamente branco.

How to Operate your Brain, de Timothy Leary (vídeo-arte, inglês, 30′, 1994)
Essa obra é uma “meditação guiada” conduzida por Timothy Leary, psicólogo e filósofo que foi expulso de Harvard em 1963 por conduzir experimentos com LSD junto aos seus estudantes. Para Leary o LSD, assim como os microscópios e telescópios, é uma ferramenta para cientistas acessarem outras dimensões da realidade, ferramenta tão perseguida hoje em dia quanto o microscópio foi quando foi desenvolvido. Esta obra é uma materialização da filosofia construída por Leary, baseada principalmente em teoria do caos, cognição, cibernética e psicodelia. How to Operate your Brain é, ao mesmo tempo, uma incrível peça de especulação que utiliza a cyber-estética do começo da internet para nos provocar a visitar o futuro imaginado por Leary.

Neuromancer, de William Gibson (livro, português, 320 páginas, 2016, Editora Aleph)
Romance que inaugurou o gênero cyberpunk, este livro de William Gibson escrito em 1984 popularizou o termo “ciberespaço”, cunhado um pouco antes pelo autor. No livro, um grupo de hackers vagabundos é contratado para intermediar roubos de dados de uma multinacional. Os integrantes do grupo acabam descobrindo-se imersos em uma trama projetada por uma inteligência artificial industrial-militar, cujo objetivo é a destruição não somente da multinacional, mas principalmente da classe de magnatas que controlam este conglomerado monopolista há séculos. Uma das coisas mais impressionantes sobre neuromancer e a capacidade preditiva de Gibson é o fato de que o livro foi escrito em uma máquina de escrever. O autor, que não tinha acesso a computadores na época, afirmou que a principal inspiração para a realidade Hi-Tech/Low-life (alta tecnologia e baixa qualidade de vida) que construiu foi o uso massivo de psicodélicos.

Serial Experiments Lain, Yasuyuki Ueda (anime, japonês, 316’, 1998)
Os animes cyberpunks valeriam uma lista à parte. Seguindo a esteira de animes como Akira, e Ghost in the Shell (que tem Donna Haraway como uma de suas personagens!), Serial Experiments Lain é um clássico do gênero. Acompanhamos a entrada da jovem colegial Lain à “Wired”, uma grande rede de comunicação mundial que integra desde o telégrafo à internet. O anime é um daqueles tipos de ficção científica que deixa a gente com uma estranha sensação de estar testemunhando um processo premonitório. Feito no final dos anos 90 do século passado, Serial Experiments Lain parece antecipar os complexos efeitos sociais e psicológicos de uma vida completamente conectada e regulada pelas dinâmicas que hoje experimentamos nas redes sociais – ainda que naquela época ambas as coisas ainda não existiam. O mais impressionante é como Lain vai se transformando a partir das coisas que entra em contato: em uma das minhas cenas preferidas, Laine já completamente transformada afirma ao seu incomodado pai que o contato com a wired não mudou nada nela, só aflorou o que ela sempre foi. Quantos de nós já não nos sentimos assim ao entrar em contato, pela internet, com coisas que de outra forma seriam inacessíveis a nós?

Solaris, de Andrei Tarkovski (longa-metragem, russo, 166’, 1972)
Não assista a esse filme antes de dormir. Eu fiz isso, e acho que tive alguns dos sonhos mais perturbadores que já tive. Solaris é assim, perturbador. Adaptação do romance homônimo de Stanisław Lem, o filme é uma mistura de ficção-científica e terror psicológico. Seguimos o processo de descontinuidade de pesquisas científicas em uma estação espacial que orbita o planeta Solaris depois que os três cientistas residentes passam a apresentar sérias questões psicológicas. A principal investigação que eles levavam a cabo é se havia algum tipo de consciência e cognição no planeta, algo que nunca conseguiram provar a partir dos protocolos comuns seguidos pelos cientistas na Terra. O filme possui uma especulação interessantíssima sobre outras formas de cognições possíveis que escapam aos cânones do pensamento científico, e as dificuldades enfrentadas por cientistas que têm como única prova experiências psico-sensoriais vivenciadas por eles.

Wax or the discovery of television among bees, de David Blair (longa-metragem, inglês, 85’, 1991)
Conhecido como “o primeiro filme a ser exibido ao vivo pela internet”, este filme independente do diretor David Blair mistura cenas de arquivos, filmagens quase caseiras, e uma narração contínua do próprio Blair, que também interpreta o personagem principal. Acompanhamos a história de Jacob Maker e sua esposa, ambos cientistas-engenheiros da NASA. No início do filme, Jacob é transferido para um projeto de mira à laser para um simulador de voos. Enquanto trabalha neste projeto, Jacob começa a se questionar sobre a real utilidade do que estava projetando, ao mesmo tempo em que começa a estabelecer uma nova relação cognitiva com a colônia de abelhas mesopotâmicas que herdou de seu avô. Produzido durante a guerra do Golfo, este filme aborda a alienação dos cientistas daquilo que produzem, efeito produzido em especial a partir da segmentação e compartimentalização das pesquisas no contexto de ciência militarizada dos EUA. Com ajuda das abelhas, Jacob não somente descobre a funcionalidade real daquilo que está projetando, mas acaba por tornar-se ele próprio um míssil teleguiado.

Xenogenesis Volume 1 – Despertar, de Octavia Butler (livro, português, 352 páginas, 2018, Editora Morro Branco)
Como todos os livros que li de Octavia Butler, não consegui desgrudar de Despertar até terminar ele. Simplesmente não deu. Primeiro de uma série de três livros, Despertar nos apresenta a história de Lilith Iyapo, humana escolhida pela espécie alienígena Oankali para reconduzir o primeiro grupo de seres humanos de volta à Terra. Passaram-se 250 anos desde que a Terra foi destruída depois de uma guerra atômica. Os Oankili, que já monitoravam nosso planeta, vieram ao resgate dos sobreviventes e incumbiram-se de regenerar a Terra. Serem muito diferentes de nós, seja em aparência (descrita como “repulsiva”), seja nas tecnologias (todas baseadas em manipulação genética de seres vivos), os Oankili condicionaram o retorno dos seres humanos à Terra à aceitação da hibridização entre humanos e Oankili. Não foi à toa que Lilith Iyapo foi incumbida da tarefa de tentar encontrar um grupo de humanos que fossem capazes de aceitar tal exigência: Lilith é uma antropóloga. Butler, uma referência em ficção científica feminista e negra, exercita uma potente especulação sobre possibilidades de vida e morte em um cenário onde perder um pouco de si seja o necessário para continuar vivo – tema tão comum nos debates sobre a história dos povos colonizados.

Legenda da imagem: Frame da vídeo-arte “Hoetep Blessing”, de Tabita Rezaire. Créditos da imagem: Tabita Rezaire.

1 Comment

  1. Chaosnat

    Boa noite, algumas correções sobre Duna de Frank Herbert…. O texto induz o leitor a acreditar que no planeta Arrakis só existe um verme da areia, quando na verdade é uma espécie inteira e se sabe sobre os motivos que levaram a humanidade à não usarem computadores (não darei spoilers), é só ler a excelente série de livros prequel sobre a Jihad Bluteriana, escritos por 1 filho de Frank em conjunto com o escritor de ficção científica Paul Anderson.

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