Dossiê “Epidemiologias”: da idealização à publicação.

Arriscando um diagnóstico
Se conversássemos sobre uma doença com pessoas de diferentes gerações, regiões ou religiões, certamente nos colocaríamos diante de modos muito singulares de conceber e lidar com os processos de adoecimento, cuidado e cura. Nesse sentido, seria um equívoco partir do pressuposto de que diagnósticos e estratégias terapêuticas, por exemplo, são recebidos e administrados da mesma maneira por todas as pessoas. As linhas que se emaranham aos densos nós das doenças são múltiplas e podem nos levar a lugares, por vezes, inesperados.
No decorrer do último século, a aceleração do modo de produção capitalista, os processos de globalização, o desenvolvimento das biotecnologias e o advento da informática introduziram novas complexidades tecnobiopolíticas às tramas das doenças. Atravessando guerras e disputas políticas, vimos (re)configurar as desigualdades socioeconômicas entre e no interior dos países. As trocas de mercadorias e serviços, assim como a circulação de pessoas, por turismo, trabalho ou migração forçada, atingiram volumes extraordinários. A atividade humana voltada à exploração econômica intensificou a destruição ambiental, fazendo emergir novas camadas de microrganismos e colocando em relação diferentes espécies. Com a emergência de novas doenças e estratégias terapêuticas, as multinacionais farmacêuticas assumiram protagonismo tanto nas bolsas de valores quanto na vida cotidiana. O acesso aos meios de comunicação e a difusão de informações, sejam elas verdadeiras ou falsas, tornaram-se ao mesmo tempo mais velozes e abrangentes. Desta maneira, em termos macropolíticos e micropolíticos, acompanhamos os efeitos de todos esses processos sobre o despertar, a proliferação e a fabricação de respostas às epidemias e pandemias.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a emergência da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus Sars-Cov-2 e altamente transmissível, como “pandemia” – etimologicamente, do grego antigo pan (tudo, todos) + demos (povo), o que afeta a todos ou todos os povos. Durante o anúncio em coletiva de imprensa, o Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom, alertou: “Pandemia não é uma palavra para se usar levianamente ou descuidadamente. É uma palavra que, se mal usada, pode causar medo irracional ou aceitação injustificada de que a luta acabou, levando a sofrimento e morte desnecessários”.
Os primeiros casos de covid-19 haviam sido registrados em dezembro de 2019 e a primeira morte anunciada em janeiro de 2020, ambos na China. Desde esse primeiro momento, acompanhei os relatos de um amigo que vivia no país sobre as ações do governo chinês para conter a disseminação da doença. Recordo como as medidas rigorosas nos assustavam, como o completo isolamento social, o controle da circulação de pessoas, a exigência do uso de máscaras, e a vigilância, rastreamento e alerta de casos suspeitos por meio dos celulares – um cenário que nos transportava para os filmes, jogos e histórias de ficção científica pós-pandêmicos que compartilhamos desde a infância. Naquele momento, muito se questionou ao redor do mundo sobre as origens do vírus e a seriedade dos sintomas, bem como se criticou as medidas sanitárias adotadas pelo governo chinês. Em pouco tempo, a maioria dos países vieram a notificar os primeiros casos da doença.
No Brasil, o primeiro caso de covid-19 foi registrado em fevereiro de 2020. Desde então, temos vivido em estado permanente de angústias e incertezas, como se caminhássemos na contramão do alerta proferido pelo Dr. Adhanom. Somado a isso, somos atravessados pela sensação de impotência frente à política de morte instaurada pelo atual governo federal.
Embora tenham sido desenvolvidas as mais rápidas vacinas da históriaalgumas delas chinesas ou produzidas naquele país –, o número de infecções e mortes por aqui segue alcançando registros diários assustadores e o ritmo de vacinação da população é lento. As estratégias adotadas pela gestão federal não foram aquelas reconhecidas como eficazes pelas ciências (distanciamento social, uso de máscaras, rastreamento de casos e vacinação). Diferente disso, o país foi transformado em um laboratório experimental para o uso de medicamentos ineficazes (principalmente, hidroxicloroquina e ivermectina) e a promoção da contaminação em massa ou a chamada “imunização de rebanho”. Tudo em nome da economia, que não podia parar. Restou a cada estado e município atuar em nome da vida por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), com respaldo do Supremo Tribunal Federal (STF).
A Unicamp, instituição na qual curso o doutorado, foi a primeira universidade brasileira a anunciar a suspensão das atividades presenciais, em 12 de março de 2020. A medida, tomada como precipitada por alguns naquele momento, demandou por parte de toda a comunidade acadêmica a construção de uma relação completamente virtualizada com o ensino à distância, mediada por computadores, celulares, microfones, câmeras e softwares. Em seguida, outras instituições públicas e privadas nos mais diferentes níveis de ensino suspenderam as suas atividades, também adotando plataformas virtuais. Com esta “virtualização do ensino”, mais uma vez foram evidenciadas as desigualdades socioeconômicas que atravessam o sistema educacional no país.
Enquanto cientista social e leitor dos mais diferentes textos sobre o assunto, deparei-me com inúmeros temas e problemas a respeito deste contexto pandêmico. São alguns exemplos: os efeitos do isolamento social e medidas de higiene sobre o comportamento, o papel das mídias na divulgação de informações seguras e notícias falsas, as múltiplas faces da desigualdade, as configurações e impactos do trabalho remoto, a geopolítica no desenvolvimento das vacinas e patentes, a preservação da saúde mental, a vida e a morte. Além disso, passei a refletir sobre os ganhos epistemológicos e metodológicos em experimentar promover relações interdisciplinares entre a pandemia de covid-19 e outras epidemias e pandemias. Germinavam algumas ideias na direção de um trabalho coletivo.

Reagindo
Pensando no cenário que se desenhava e aliado aos meus interesses atuais de pesquisa no doutorado sobre as configurações e desdobramentos de terapias experimentais para a cura do HIV, ainda em março de 2020, propus à Daniela Manica (orientadora do projeto) a organização de um dossiê que englobasse múltiplas perspectivas sobre as doenças, epidemias, pandemias, modos de cuidado e cura. Prontamente, a proposta foi aceita e incentivada. Logo em seguida, entrei em contato com Carolina Cantarino, uma das coordenadoras da Revista ClimaCom, para encaminhar a proposta do dossiê. Em diálogo com Susana Dias, também coordenadora do periódico, o projeto foi acolhido com previsão de publicação para dezembro daquele ano. Por sugestão de Carolina, a propósito, o título do dossiê foi alterado de “Epidemias” para “Epidemiologias”, levando em consideração os seus estudos sobre antropologia e filosofia da ciência. O novo título tornava mais nítida a proposta de multiplicar as concepções, experiências e saberes sobre as doenças.
O primeiro movimento do projeto editorial foi o de elaborar a chamada de trabalhos, em parceria com Daniela. Convidamos, então, a submissão de artigos, ensaios, resenhas, entrevistas, textos jornalísticos, experimentações artísticas e vivências culturais que se dispusessem a pensar criativamente e criticamente os acontecimentos das doenças. Covid-19, zika, febre amarela, dengue, HIV/aids, sífilis, varíola e influenzas foram apenas alguns exemplos mencionados, que geraram e ainda geram grande poder de transformação e, por isso, precisavam ser pensados. Com vírus, bactérias, aves, porcos, morcegos, mosquitos, vacinas, medicamentos, hospitais, corpos, emoções, movimentos sociais… provocamos os/as autores/as a recolherem as linhas que compõem os emaranhados das doenças. A partir disso, caberia pensar como as fronteiras entre natureza e cultura, humano e máquina, sujeito e objeto, ciência e política, razão e afeto, vida e morte são desestabilizadas. E refletir sobre as categorias políticas mobilizadas, nas reapropriações e devires possíveis, sobre como novas experiências emergiam, e os modos de narrar tantas histórias. Ao despertar para os novos encontros, reconhecemos que somente modos de conhecimento plurais e politicamente situados estavam habilitados para perseguir essas provocações.
Publicada a chamada, caberia organizar as agendas, aguardar o recebimento dos trabalhos e realizar alguns convites para publicação. Aos poucos, chegavam produções originais de autores/as dos mais diferentes campos de atuação e níveis de formação. Recebemos 33 trabalhos, sendo a maioria artigos (11), produções artísticas (8) e ensaios (7). Além de colaborações nacionais, o dossiê contou ainda com submissões internacionais (Portugal, Estados Unidos, Colômbia e Argentina). Acolhemos e oferecemos o mesmo tratamento editorial a todos os trabalhos recebidos. Isso envolveu leituras, o encaminhamento dos artigos e ensaios para parecer científico (no caso dos artigos e ensaios), e mais leitura. Durante o processo, buscamos desenvolver uma relação próxima com todos/as os/as colaboradores/as. Um modo de fazer ciência distante das realidades dos/as autores/as não dialogava com o nosso propósito.
Para compor o dossiê, propus à Daniela e aos colegas do Labirinto uma oficina de escrita criativa visando a construção coletiva de um conto de ficção científica. Não havia um roteiro pré-estabelecido ou modelo a seguir, apenas o conhecimento de minha parte sobre essa possibilidade. O laboratório tem sido justamente este espaço acolhedor para proposição de ideias e invenções com diferentes modos de expressão, inspirados por autoras e autores que temos lido e discutido, como Donna Haraway, Anna Tsing, Tim Ingold, Fábio Kabral e Octavia Butler.
Na prática, através de um documento compartilhado, uma página em branco convidava à escrita de ao menos um parágrafo, sem qualquer obrigatoriedade. Escrevi os dois primeiros parágrafos especulando um futuro após as mudanças climáticas e recorrentes pandemias, regido por protocolos de higienização e contato social, no qual as formas de vida das quais conhecemos hoje só pudessem ser acessadas em bases de dados ou parques artificiais. Experimentei dar os primeiros passos para a construção do cenário e da personagem, sem ter qualquer controle sobre o andamento da história.
Fui surpreendido pelo rico debate que a história gerou entre nós. Aos poucos, cada participante sentiu-se à vontade para contribuir, ainda que não soubesse muito bem de onde partir e aonde chegar. O desafio era justamente este: permitir-se habitar um lugar desconhecido, arriscando costurar os fios da história. O caminho percorrido da ideia à materialização do texto não deixa de ser, sobretudo, embaraçoso. Tamanho movimento é experimentado em qualquer trabalho de escrita, em artigos, dissertações, teses ou outros gêneros narrativos pelos quais nos aventuramos. Por esse motivo, o dispositivo da escrita nos é tão caro.
Ao final do processo de escrita, tivemos a contribuição de 11 integrantes do Labirinto (Adriana Silvestrini, Brunno Toledo Pereira, Camila Montagner Fama, Cristiana de Oliveira Gonzalez, Daniela Manica, Fernando Monteiro Camargo, Jacqueline de Campos Medeiros, Kris Herik de Oliveira, Marina Bohnenberger, Milena Peres, Violeta Assumpção da Cunha), chegando a pouco mais de 20 páginas de uma espécie de material bruto que demandava ser esculpido ou uma trama de fios soltos a serem entrelaçados. Para isso, em parceria com Daniela assumi o processo de edição do conto, movimentando, removendo ou adicionando trechos e palavras. Além disso, acrescentei os títulos do conto e de cada parte. Por fim, realizamos o exercício de leitura coletiva, onde cada um pôde sugerir novas alterações.
Ao entrar em contato com o texto final de “2320 – Dormio” e reconhecendo a expansão na busca por experiências narradas em áudio, a exemplo dos audiobooks e podcasts, arrisquei outra proposição: a produção de um audioconto. A ideia foi acolhida por todos/as e desenvolvida pelas colegas interessadas em narração e edição do áudio, bem como na construção da paisagem sonora (Adriana Silvestrini, Carolina Carretin, Jacqueline de Campos Medeiros, Clarissa Reche, Milena Peres, Violeta Assumpção da Cunha). O resultado ficou encantador, mágico.
Devido à extensão do conto, ainda foi possível torná-lo um livro digital para ser folheado. Para esse trabalho, Clarissa se dispôs a diagramar o texto e produzir algumas ilustrações digitais. Pudemos contar também com uma ilustração de Laura Lino. Desta maneira inventiva, produzimos um resultado múltiplo, que jamais seria possível de ser alcançado em outro contexto ou situação.
Concluído o conto, realizamos os últimos movimentos enquanto editores do Dossiê “Epidemiologias” com a elaboração do texto de apresentação. O texto em questão buscou resgatar a proposta original e dialogar com o material recebido. Outro desafio se apresentou nesta etapa, o de sintetizar em poucas linhas toda a experiência com o dossiê e o conteúdo dos trabalhos. Dentro de duas seções, “Diagnóstico” e “Reação”, optamos por atualizar o texto da chamada e apresentar brevemente os temas abordados pelas colaborações.
Assim, de um modo politicamente situado, os trabalhos compuseram narrativas que provocam fissuras em estados de coisas, inspiram, despertam para novos problemas, e transbordam. São alguns dos temas percorridos criticamente e criativamente pelas autoras e autores: fluxos e devires da pandemia de Covid-19; isolamento social; vida e morte; ensaios clínicos e questões raciais; corpos, escalas e fronteiras imunológicas; manifestações culturais de cuidado; macacos, febre amarela e literatura; HIV/aids, artes e contaminações; queimadas e doenças respiratórias; a epidemia de Zika; deficiências; sonhos, distopias e realidades epidêmicas; gestos contra a necropolítica; alteridade e exclusões; cosmopolítica; vidas e artes não humanas; divulgação científica. Contamos ainda com as contribuições do projeto “Arvorecer de casa em casa”, com curadoria de Susana Dias, e outros conteúdos jornalísticos de colaboradores da ClimaCom.
Nada do que foi feito envolveu atividades simples e rápidas. Todo o trabalho, da idealização à publicação (em dezembro de 2020), levou o tempo de uma gestação: nove meses. Isto envolveu a dedicação de todos/as que colaboraram com o dossiê: editores, autores/as e equipe da ClimaCom. Levamos adiante esta proposta imersos em rotinas extensas enquanto pesquisadores/as, professores/as, orientadores/as, artistas, mães, pais, cuidadores/as. Era a reação que o momento exigia. Assim, deixamos uma singela contribuição ao que já vivemos, temos vivido e ainda viveremos.

Acesse o dossiê completo aqui.

 

 

Imagem: Capa do dossiê “Epidemiologias”. Créditos: David S. Goodsell. Respiratory droplet, 2020. Ilustração em aquarela.

Descrição da imagem: A imagem quadrangular é a capa do dossiê “Epidemiologias”. À frente da imagem está escrito “ClimaCom” (em branco e magenta) e “Epidemiologias” (em magenta). Ao fundo da imagem há um recorte da ilustração em aquarela “Respiratory droplet” (2020), do pesquisador e artista estadunidense David S. Goodsell. A ilustração mostra um corte transversal através de uma pequena gota respiratória, como as que transmitem o SARS-CoV-2, preenchida com moléculas que estão presentes no trato respiratório, incluindo mucinas (verde), proteínas e lipídios do surfactante pulmonar (azul) e anticorpos (castanho). Emaranhado à gotícula há um vírus (em magenta e lilás).

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