Entre máquinas, códigos e a pele

“Em um contexto de tanta tensão política, tanta violência, a urgência para os coletivos, as ativistas e movimentos sociais é permanente e nós brindamos espaços de acolhimento, mas depois da tempestade, convocamos um momento para tomar ar e imaginarmos juntas como podemos construir através de uma permeabilidade.
[…]
Nossas ações não têm como bússola que mais pessoas, mais mulheres, mais corpos se conectem com tecnologia digital, pois reconhecemos que algumas sequer terão acesso real a elas. Nosso movimento é compreender tecnologias de fora para dentro, até voltar a pele, ao ancestral, ao que nos faz sentir, ao que nos faz conectar com quem não tem contato com as tecnologias em ações significativas e vitais, sustentáveis e holísticas.”
Manifesto do Aço à pele
Nanda de Vedetas e Nadège de Kéfir

Começo esse texto com trechos de um manifesto escrito por companheiras que de longa data se comprometeram com o desenvolvimento de tecnologias livres, autônomas e feministas. Faço essa menção, primeiro por um motivo bastante pessoal. Reler essas palavras renova as minhas forças. Em segundo lugar, porque considero que os parágrafos acima traduzem de uma forma lírica o que foi academicamente discutido no Dossiê Tecnopolíticas de Gênero, publicado pelo Cadernos Pagu em janeiro de 2021.

Os artigos que compõem o dossiê trazem reflexões e achados de pesquisa de autoras do sul global, principalmente pesquisadoras e ativistas brasileiras, que têm se dedicado a investigar as intersecções entre gênero, política e tecnologias. O fio condutor dessas discussões é a ênfase sobre a potência política dos feminismos contemporâneos e o modo como esse movimento tem incorporado e se apropriado do debate sobre as tecnologias da informação.

Alguns dos textos vão apresentar exemplos de coletivas feministas e movimentos de mulheres que estão à frente do desenvolvimento de infraestruturas autônomas e comunitárias, procurando inventar alternativas tecnológicas que ressignifiquem a linguagem, construam narrativas contra-hegemônicas e nos levem a pensar a técnica sempre em interação com nossos corpos e vivências. Ao mesmo tempo em que exploram essa capacidade criativa na busca por imaginar outros futuros possíveis, esses grupos também desafiam as universalizações e as hierarquizações do conhecimento e ocupam espaços nos quais antes estavam invisibilizados. O cuidado de si e o cuidado umas com as outras é uma prática traduzida para as interações online como estratégia de enfrentamento às violências e às múltiplas desigualdades de gênero, raça e classe.

Outro conjunto de artigos está dedicado às relações mais íntimas mantidas entre corpos e tecnologias e o modo como as formas de vigilância e controle sobre a saúde sexual e reprodutiva se reconstroem sob a ingerência de aplicativos, algoritmos e mídias sociais. De outro lado, hormônios e técnicas de transformação corporal são ingredientes que subvertem as normas estabelecidas e tornam possível a performance dos corpos transmasculinos. O corpo é dado, mas também é código na atual ordem informacional.

Cada um dos textos contribui a seu modo para desdobrar os diversos atravessamentos entre gênero e tecnologias e tecer perspectivas futuras para redes de liberdade, autonomia e afeto. Nos tempos assombrosos em que vivemos, a aderência à digitalização parece inescapável (desde as reuniões e aulas online até o cadastro para receber o auxílio emergencial), mas ainda é atravessada por altos índices de exclusão ao acesso e controlada pelo monopólio de grandes empresas que moldam a maneira como nos informamos. Mais do que nunca, habitar esses espaços exige de nós pensamento crítico e engajamento político.

Para além de um debate situado na academia, o Dossiê Tecnopolíticas de Gênero é sobretudo um chamamento, um convite a ocuparmos e politizarmos as tecnologias desde uma abordagem feminista, decolonial e interseccional.

Para conhecer o material, clique aqui.

Boa leitura!!

 

Daniela Araújo é integrante da Organização Feminista MariaLab, Campinas, SP, Brasil.

 

Descrição da imagem: Fotografia retangular e colorida do rosto de uma mulher negra. O rosto da mulher aparece desfocado no plano de fundo. Ela usa uma camiseta branca sem mangas e um brinco colorido dependurado. A mulher segura um cabo de internet azul e o aponta em direção à câmera. A ponta do cabo está desencapada e dela saem 8 fios coloridos nas cores azul, verde, laranja e branco em um formato que se assemelha a uma flor com pétalas abertas. Fim da descrição.
Créditos da imagem: Nanda Monteiro.

 

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