Relato: Contextualizando o reconhecimento da minha vivência de racismo na moradia estudantil

“No livro da antropóloga Lélia Gonzalez, ‘Por um feminismo Afro-Latino-americano’, a parte que mais me enredou foi a que ela discorre que a população branca, mesmo sendo pobre, possui mais privilégios sociais que as pessoas negras. Para mim, isto não parecia ser real, pois a moça que morou comigo não parecia ter mais privilégios que eu, por ser branca. Foi um engano.”

Este é um trecho retirado do relato de Michelle Perez dos Santos, pesquisadora do Labirinto, acerca de uma situação que viveu na moradia estudantil da Unicamp, onde foi alvo do racismo e do descaso estruturais e cotidianos por meio dos quais a branquitude se infiltra nas atitudes diárias e na formação e dinâmicas das instituições. No relato, Michelle dialoga com as teorias e as experiências de outras importantes escritoras e pensadoras negras – como bell hooks, Lélia Gonzalez e Grada Kilomba – para descrever e refletir a respeito da situação que viveu, de seu próprio processo de reconhecimento do racismo que sofreu e de sua posicionalidade no mundo marcada pelo gênero e pela raça e, ainda, de sua frustração e indignação ao ver-se silenciada e ignorada ao tentar relatar e denunciar sua experiência.

No momento em que eu percebi que ficava relatando sobre o racismo e o roubo e nada acontecia, eu me resignei à situação. Percebi que o discurso, a voz de uma mulher branca é muito mais legitimada que a minha. […] Mais uma vez, eu me identifiquei com o escrito da bell hooks quando ela escreve: “Nosso silêncio não era mera reação contra as brancas liberacionistas nem gesto de solidariedade aos patriarcas negros. Era o silêncio do oprimido: aquele profundo silêncio engendrado de resignação e aceitação perante seu destino” (HOOKS, 2019). Meu destino naquela situação era aceitar que ela estava certa, a moça branca, e eu tinha que esquecer que na moradia estudantil o racismo dá punições. Isso era só papel e discurso, não tinha nada de materialidade naquela regra de vivência. Para o racismo, as punições acabam não valendo.

As colegas, a representação discente, a administração estudantil da moradia, as assistentes sociais, a instituição, a polícia. Foram muitas as instâncias que, orientadas por essa branquitude sufocante, se negaram e se negam a reconhecer e intervir na situação que viveu e cujas consequências seguem se manifestando em sua vida: se recusam a reconhecer seus próprios privilégios, seus erros históricos e sistêmicos, o racismo de suas atitudes mais cotidianas. Michelle, assim, identifica em sua vivência como se manifestaram algumas das “fases” (ou, ainda, “mecanismos de defesa do ego branco”) de reação dos brancos ao terem seu racismo apontado, como descreve Grada Kilomba em sua obra “Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano”: negação; culpa e vergonha; (não) reconhecimento. Como aponta, ao final do relato, situações como esta exigem respostas institucionais efetivas e comprometidas com o antirracismo:
“Seria melhor e mais justo reconhecer que o racismo povoa todos nós, é parte da nossa sociedade, e que precisamos enfrentar de frente esse problema para poder superá-lo. Ler textos antirracistas e autoras negras não basta, é preciso reconhecer o erro e reparar com mais justiça as situações de racismo cotidianas contra mulheres negras como eu.”
Confira aqui o relato na íntegra.

 

Legenda da imagem: instalação “The Table of Goods” de Grada Kilomba – MAAT, Lisboa, 2017. Crédito foto: Bruno Lopes.

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